Desenho de parede
Faltavam dois corpos deitados no chão do jardim para que tudo ficasse como um dia foi: eu e tu de corpo encostado
( quando eras vivo e as coisas faziam sentido)
num passado de olhos fechados a chegar perto das mãos, a proximidade a viabilizar o toque dos afectos
(os afectos)
- eu nunca te vou poder perdoar por teres morrido, desculpa: por muitos anos que passem, por muito que os jornais na rua digam que o tempo passou
(...) há este enorme vazio feito de buracos, pedras, paus e folhas secas a perguntar por ti
- perdoar-te por teres morrido: pensar em perdoar-te sem roer as unhas, sem encolher-me na cama, sem lágrimas com comprimidos contados dentro da carteira à espera de um copo de água que me engula
o som da música a tocar-nos nos pés naquele dia, a fazer-nos os dedos dos pés mexer como se a ideia de vida feliz fosse um momento de cheiro a relva fresca num dia quente de dedos a movimentar-se apertados dentro do sapato
- eu guardo comprimidos na carteira desde o dia em que morreste
(gosto deles e eles dizem gostar de mim)
porque já não te posso olhar:
às vezes sinto as minhas pernas correr à minha frente quando te vejo no fundo da rua sem seres tu, a ser eu e a minha cabeça a fazermos as minhas pernas correr para ti num sítio onde não existes por não seres tu, por não poderes ser tu, eu a fugir daquilo, as minhas pernas a passarem-me à frente do corpo; as saudades a fazerem-nos tropeçar e cair, e eu a chorar sozinha na rua com a mala e os comprimidos e a minha cabeça à espera que algum nos tire dali e nos faça sentar, em fila, no passeio
eu
as minhas pernas
a minha mala
os comprimidos e a cabeça ao lado
(temos todos tantas saudades da tua forma quieta de rir)
quando retornar é impossível.
Volto ao sítio onde te enterraram na esperança de que te sintas quente e um dia voltes para me ver.
( quando eras vivo e as coisas faziam sentido)
num passado de olhos fechados a chegar perto das mãos, a proximidade a viabilizar o toque dos afectos
(os afectos)
- eu nunca te vou poder perdoar por teres morrido, desculpa: por muitos anos que passem, por muito que os jornais na rua digam que o tempo passou
(...) há este enorme vazio feito de buracos, pedras, paus e folhas secas a perguntar por ti
- perdoar-te por teres morrido: pensar em perdoar-te sem roer as unhas, sem encolher-me na cama, sem lágrimas com comprimidos contados dentro da carteira à espera de um copo de água que me engula
o som da música a tocar-nos nos pés naquele dia, a fazer-nos os dedos dos pés mexer como se a ideia de vida feliz fosse um momento de cheiro a relva fresca num dia quente de dedos a movimentar-se apertados dentro do sapato
- eu guardo comprimidos na carteira desde o dia em que morreste
(gosto deles e eles dizem gostar de mim)
porque já não te posso olhar:
às vezes sinto as minhas pernas correr à minha frente quando te vejo no fundo da rua sem seres tu, a ser eu e a minha cabeça a fazermos as minhas pernas correr para ti num sítio onde não existes por não seres tu, por não poderes ser tu, eu a fugir daquilo, as minhas pernas a passarem-me à frente do corpo; as saudades a fazerem-nos tropeçar e cair, e eu a chorar sozinha na rua com a mala e os comprimidos e a minha cabeça à espera que algum nos tire dali e nos faça sentar, em fila, no passeio
eu
as minhas pernas
a minha mala
os comprimidos e a cabeça ao lado
(temos todos tantas saudades da tua forma quieta de rir)
quando retornar é impossível.
Volto ao sítio onde te enterraram na esperança de que te sintas quente e um dia voltes para me ver.
meu deus, como me tocou este texto. como o sinto como meu. espantoso.
Pôcha, todos estes posts...são bonitos e transmitem tanta de saudade!
Quando a palavras criam espaço e deixam sentir os silêncios, a escrita passa realmente a ser outra coisa, outra dimensão. Neste mundo agitado das escritas criativas e dos encantadores de serpentes, é bom ler textos onde as não são artifícios nem exercícios, são estado de alma a que a gente simplesmente não resiste. Bonita prosa. Bonita alma.
Mais uma vez senti.
a ideia da alma bonita matou-me :)
Obrigado, Sr anónimo.
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