17.6.06

Àtàlaià

O pior era o silêncio que saía das casas e assentava no chão terroso. Aquele monte de pedras escuras, de portas cerradas e buracos a fazer de janelas, estava deserto. “Raios, até os bichos se foram”, pensou Pierre Lotie, enquanto avançava, cheio de cautelas, com os dois companheiros do reconhecimento até ao centro da aldeia abandonada.
Repetia-se a cena do dia anterior, naquele lugarejo sujo de nome impronunciável. “àtaléiià”, "tàleià", ou lá o que era aquela palavra do diabo. Depois de uma marcha dura por caminhos cobertos de um pó fino e esbranquiçado, arrastando canhões e artilharias menores, carroças e mulas, tinham chegado àquele sítio de mau agouro, quando o sol já descia no horizonte. A aldeia estava deserta e era sinistra. Todos tinham fugido horas antes de ali chegarem. Era o que lhes parecera, pelo menos. Destacados para passar as casas a pente fino, Saul, Jean e François acabariam por cair às mãos do punhado de desgraçados que se tinham acoitado nas casas, armados de paus e forquilhas e de um mosquete meio rombo. A coisa tinha terminado logo a seguir, com os aldeões passados à espada, mas o caso beliscara o moral da tropa. Afinal aquilo era um bando de maltrapilhos sem chão onde caíssem mortos mas tinham eliminado três soldados a Masséna. Para tranquilizar os homens, o general discursou no enterro dos companheiros, que ficariam para sempre em solo estrangeiro, paz à sua alma no céu. E logo a seguir, garboso e arrogante sobre o seu cavalo, incentivara as tropas, com urros de vitória.
Agora, no calor sufocante da tarde, a farda pesada e coberta de pó, atormentava-o. Mas sobretudo tornava-o um alvo demasiado visível. Se algum daqueles desgraçados se tivesse emboscado, seria um homem morto. Mas aquele foi só um pensamento fugidio. Sentiu os nervos tensos e apertou a arma com mais força, enquanto olhava em volta, sentidos alerta. Não havia movimento, nenhum som. Nada. Nada, a não ser a bica de água no centro do terreiro a pingar, insistente, e um estendal um pouco mais longe, com meia dúzia de trapos já tesos de secos. Junto a uma das casas, um banco tosco de madeira, estava tombado de lado, deixado assim, talvez, na pressa da fuga. Pierre decidiu não esperar mais.
Enfiou a baioneta na ponta do mosquete, fez sinal aos companheiros e avançou, levado pela raiva, pelos nervos e pelo medo. Dispararia ao mais leve movimento, ao mínimo som.
A porta de madeira cedeu ao primeiro pontapé e Pierre precipitou-se no buraco negro que se abria à sua frente. “Jésus, bon Jésus, soit près de moi mon Jésus”. O murmúrio soltava-se-lhe dos lábios frenético, hipnótico, na esperança talvez de que a prece pudesse acender uma luz no interior daquela negrume angustiante. Por isso, ou porque os seus olhos se tivesse habituado à falta de luz, uma espécie de obscuridade deixava agora ver os contornos difusos de uma mesa à sua frente, um catre ao fundo, tudo envolto num cheiro intenso a lume frio e a sopa.
Um leve gemido, como um miado triste, soou então no canto mais afastado da casa. Pierre deu um salto e gritou: “Qui est là?”. Vendo melhor agora, agarrou a arma pronto a disparar e correu para o sítio de onde vinha aquele som que não conseguia identificar. Seria um animal moribundo? Ou um homem fingindo-se ferido e prestes a saltar-lhe em cima para o degolar?
A surpresa gelou-o. Estendida no sobrado, coberta por um largo farrapo, uma mulher jazia deitada com os olhos muito abertos, em silêncio. E a seu lado, embrulhado numa manta, protegido num abraço, um recém-nascido sorvia a vida, sôfrego, agarrado ao peito da mãe.
Durante um, dois, cinco, seis segundos, Pierre não se moveu, de arma apontada ao peito da mulher. Sentiu um formigueiro nas mãos e as gotas de suor na testa rolaram enfim numa carícia de cócegas e toldaram-lhe os olhos. Então, Pierre baixou a arma, passou a manga suja na cara, pôs o indicador sobre os lábios e soprou ao de leve, num aviso quase terno. Depois saiu para luz do dia e juntou-se aos companheiros no terreiro. “Rien”, gritou. “On peut passer”.

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Olá Mena

Está muito giro este conto.
Já agora, a Átáláiaá é a Atalaia da nossa infância, da Avó Ermelinda e das nossas brincadeiras?

Beijinhos
Eurico

10:14 da manhã  
Blogger Filomena Naves said...

Claro que é. Ainda bem que gostaste.Muitos beijinhos para ti também

11:09 da manhã  

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