12.6.06

Contos do Mundial (III): Água

No hotel de Dacar havia uma sala onde passavam jogos do mundial. Um ecrã enorme, poltronas para os hóspedes, ar condicionado. Sentámo-nos ali, no escuro, e começámos a ver um qualquer jogo banal. Acho que era um Bélgica-Dinamarca, mas não tenho a certeza. Às tantas, fiquei tonto de ver tanta correria e a bola a saltar, no meio daquela cor meio pálida do sistema de projecção. E foi num desses momentos indistintos, numa excitação que me era alheia, que me dei conta da enormidade do que vira. Tive a súbita consciência de estar vivo e de viver num cansaço infinito...

...Dois dias antes, quando eu e os meus companheiros decidimos partir, o calor estrangulava a terra e a luz era insuportável.
A cidade entrara em colapso, com milhares de refugiados que tinham procurado ali refúgio do tiroteio que continuava na capital.
Havia um cheiro a gente, que se misturava com o odor suave e doce das mangas maduras. Por vezes, caía um fruto da árvore e corriam dezenas de crianças (que antes da queda não estavam lá), como que movidas pela poderosa mola da fome. Víamos uma curta comoção, quase uma briga, e mais nada, apenas as mesmas caras de falsa tranquilidade de uma multidão à espera. Observados de perto, os rostos estavam ansiosos, cheios de medo.
O resto da cidade era uma zona de catástrofe. Faltava tudo, electricidade, comida e água, e temia-se que o elevado número de refugiados causasse uma epidemia.
Debaixo da sombra, estávamos nós, os quatro brancos; o motorista tinha ido buscar a viatura algures. O ponto de espera não era importante, outro acaso, fora ali que nos conduzira a sorte, ao rapaz que tinha carro e combustível; nós, pagávamos uma fortuna para que ele nos levasse ao Senegal. E o rapaz disse, esperem aqui, e ali estávamos, obedientes, sem nada para fazer.
E eu brincava com uma grande garrafa de água de plástico, meio bebida, daquelas de litro e meio. Um ligeiro movimento do braço e a garrafa meio bebida oscilava na atmosfera, como se fosse um grande lustre de cristal a dançar pendularmente, formando um largo arco brilhante.
Juntavam-se vizinhos, desesperados, maltrapilhos. Falaram de futebol, pois havia ecos de um campeonato do mundo; o Brasil ganha por certo, pois é, ganhar é certo.
Eles perguntaram o que íamos fazer e nós explicámos que íamos para Dacar, mas que voltaríamos por certo.
Contem que o povo não aguenta mais, disse um dos vizinhos, um homenzinho assustado, que trazia um filhote nu pela mão. E o meu amigo disse que sim, senhor, que íamos contar tudo.
Ficámos ali um bocado no calor de brasa, em silêncio, à espera do motorista, depois um dos moços contou que tinha sido jogador de futebol, muito antes da guerra, claro. Quando lhe perguntei o que fazia agora, encolheu os ombros e disse que se calhasse ia para Portugal. Depois, outro falou assim: Tenho mulher e quatro filhos, estou em casa de uns primos, não há nada para comer, temos sede e fome, é preciso esperar.
Eu continuara a fazer aquele gesto impaciente de mover a minha garrafa de água meio cheia num arco pendular desenhado pelo meu braço.
Quatro crianças estavam à minha volta e uma delas seguia o movimento do meu braço. Era baixinha, dava-me pela mão, e a sua cabeça seguia, fascinada, o movimento oscilante do braço e da garrafa de água meio cheia, e umas cintilações de luz intensa faziam brilhar a água que se agitava no interior da garrafa de plástico de litro e meio.
Pensei que ele se fascinava com a luminosidade, os brilhos, a beleza dos turbilhões ao acaso.
E, então, o menino disse assim: dá-me água.
Não pediu. Na inocência da sua sede, dera uma ordem....

...A Dinamarca (seria a Dinamarca?) marcou um golo e os clientes na sala do hotel de Dacar ficaram contentes, excepto nós os quatro, que ainda não compreendíamos bem aquelas imagens. E no meio do ruído de fundo, que me assustara, senti de súbito uma sede horrível, quase um pânico. As minhas entranhas tinham paralisado e magoavam, como se acabassem de cristalizar num único golpe. O meu corpo transformara-se em carência e dor, tomado por uma espécie de buraco negro a roer-me por dentro.
Peguei na pequena garrafa de água fresca ao meu lado e bebi dela, um gole, depois outro, sentindo que chorava de alívio e que o mundo se recompunha, após ter oscilado no seu equilíbrio eterno.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Para alguns ainda há alternativas, e a água aparece mesmo ao lado. Gostei muito.

8:10 da tarde  

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