17.6.06

Contos do Mundial (IV): Bobeei e dancei (terceira parte e final)

3. Subi até à enfermaria e lá estava a Mônica e o neném, um morceguinho engelhado, de olhinho fechado e uma ternura de mão. A equipa médica, feliz, o rádio de bolso a debitar correrias na minha orelha. Peguei no frágil pacotinho, uma delicada porcelana. De repente, aquele gol, sambado até à felicidade. Rivelino passou a Jairzinho, Jairzinho meteu em Pelé, que dançou em frente ao zagueiro italiano, que parecia árvore plantada ou espantalho fixo no gramado, e mete em Julinho, que dispara a gol, feito vulcão explodindo ou orgasmo fodido.
Goooool.

Não sei como fiz aquilo. Estava ouvindo pela rádio e as minhas mãos seguravam o neném, os braços envolviam aquela pequena bola mágica, que saiu voando, direito ao tecto, eu gritando, parecendo louco, gooooll, lembro-me de ver a expressão de pânico das enfermeiras, da minha sogra, do médico que tinha um físico de armário. Foi um pandemónio, candomblé pé-ante-pé, o menino voando em câmara lenta na direcção do tecto da enfermaria e o médico saltando, feito goleiro italiano, e a bola já descia em arco, o doutor se estirando na atmosfera, estetoscópio pendurado e a bata branca parecendo nuvem, e pegou o menino na via descendente, se estoirou no chão, amparando no vasto amplexo o pobre do pimpolho.

Virei árbitro enfrentando torcida zangada. Mônica permanecia lívida, quase desmaiada, Recuperara num instante do seu estado bovino e ensonado e me encarava, incrédula. E eu pensei assim: bobeei, dancei.
Me queriam pegar, estraçalhar. Era cabra marcado para morrer. Minha sogra me rogou uma praga horrível e prometeu lançar seus dois filhos bandidos procurados para me cortarem as jóias da família, tipo trofeu.

O meu minino se machucou, chorou Mônica. Eu disse que nunca chegara a bater no tecto. Terá roçado a centímetros. O médico estudava a moleirinha do neném, não sofreu nada, dona Mônica, percebi que tinha sido tempestade em copo de água.
Mônica me largou outra praga. Era braba, a mulata. Depois, me expulsaram do hospital doutor Rubem Fonseca, pelo que tive pela primeira vez a sensação do jogador que leva vermelho.

Mas, enfim, o Brasil ganhara e a emoção foi passando, como fim de carnaval. O samba se acabara. Mônica me proibiu de abrir a boca e me expulsou de casa. Foi ela quem convenceu os meio-irmãos a não me retalharem, para não deixarem órfão o probrezinho do pequeno. Temi que tivesse acabado o tempo bacana, mas ela acabou por me perdoar. Há um filósofo alemão que fala no eterno retorno e penso que sei o que é isso. Um conceito simples, no fundo. Passaram três meses de castigo. Estava chovendo e eu fora de casa. Pus a cara na vidraça e olhei para dentro, como cachorro abandonado. E Mônica se compadeceu. Abriu a porta. Me abraçou. É sempre assim, é isso o eterno retorno, o final de cada uma das nossas brigas.