8.6.06

Contos do Mundial (II): O gordo joga à baliza (continuação)

3. Não é possível apagar a mancha de um golo humilhante. Por isso, Sebastião passou a jogar apenas em sonhos. Quando aparecia no campo improvisado (e aparecia quase sempre) era excluído, mesmo que houvesse número ímpar de jogadores e fosse necessário mais um para completar a equipa. Por vezes, Sebastião ganhava um companheiro na bancada de público. Quase sempre o mesmo, o pequeno Ângelo, que também não tinha talento para fintas.
A amizade aos 14 anos nunca surge em golpe único, mas cresce como o faz um corpo novo, com as suas deformações adolescentes, o braço que se estende e a perna descoordenada, a voz que perde o controlo. E assim é a amizade, uma confusa sucessão de eventos. Sebastião e Ângelo, os dois piores jogadores do grupo do liceu, foram ficando amigos.
Porque nunca jogavam, davam longos passeios pela desolada paisagem suburbana, pairando em jardins abandonados, depois nos cruzamentos de ruas enviesadas, subindo a colina descampada até à linha férrea, onde viam passar comboios. Não falavam muito, não precisavam.


4. Quando nesse ano começou o campeonato do mundo, os dois miúdos por vezes passavam em frente ao café Libelinha, na hora dos jogos. Naquele tempo, a televisão ainda era a preto e branco e o televisor do café tinha a antena avariada, a imagem tremente e cheia de fantasmas. A sala enchia-se de homens desocupados, que falavam sobre nada. As cadeiras estavam alinhadas em anfiteatro e no ar pairava o cheiro a cerveja derramada.
Numa tarde, quase à hora do jantar, Sebastião e Ângelo ficaram a ver um jogo. E aquilo aconteceu de súbito, sem aviso. Entre os fantasmas, na imagem imprecisa, o temível Quiroga conquistou a bola e avançou sem oposição. E, no caminho da baliza, estava apenas Emerson, o guarda-redes. Foi tudo rápido: Quiroga disparou para o espaço vazio e Emerson voou na direcção da bola, esticando-se como se fosse um pássaro.
No café, todos reagiram com emoção. E foi no meio dessa comoção que os dois rapazes saíram para a rua, enquanto na memória de Sebastião cristalizava a imagem do guarda-redes a voar na direcção da bola, uma imagem que ia ficando cada vez mais lenta e graciosa, o desenho de um arco ou a fantasia do sonho, até ser o movimento suave de um corpo que deixara de estar amarrado ao próprio peso e que flutuava, ausente de si próprio.



5. O subúrbio mudou. Após as férias da escola, recomeçaram as obras no descampado. Ergueu-se um novo bairro. O campo de futebol foi transformado em fileira de prédios. Depois, quando as estruturas ficaram prontas, vieram mais habitantes.
Sebastião mudou de turma e Ângelo mudou de escola. Nesse mesmo ano, os pais de Ângelo divorciaram-se e ele partiu com a mãe para outro bairro.
Os rapazes da escola continuaram a jogar futebol, nas traseiras de um pátio recuado, em espaço acanhado. Os jogos tinham perdido o encanto e o entusiasmo foi morrendo devagar. Sebastião também mudara: ao crescer, já não parecia tão gordo. Era ainda um rapaz calado. Gostava da solidão e de divagar nos seus pensamentos. Mas numa parte talvez adormecida da consciência, pairava ainda a memória do longínquo voo do guarda-redes, o seu desafio à gravidade, o sonho subindo em pássaro, como se o peso fosse algo que a vontade deveria vencer. Estes pensamentos não eram concretos e não apareciam em todas as ocasiões. Antes formavam uma espécie de neblina que separava Sebastião das vozes dos fantasmas, as múltiplas vozes do mundo real, lá fora, cujo eco repetia sempre o estribilho: “O gordo joga à baliza”. Com estas palavras, ou outras parecidas.

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Não foi fácil ler um texto tão comprido. Mas valeu a pena. Gostei imenso.

10:50 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Eu também. Mesmo muito.

10:43 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

pois, é pena por vezes ñ termos tempo de ler os teus textos

.. por serem longos por vezes desistimos, pois a vida chama-nos, frequentemente cheia de nadas..

7:51 da manhã  
Blogger luisnaves said...

Agradeço os vossos comentários e peço desculpa por não ter conseguido escrever um conto mais curto

11:18 da manhã  

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