8.6.06

Contos do Mundial (II): O gordo joga à baliza (início)

1. O subúrbio sombrio espalhava-se por todo o vale, em retalhos de bairros dispersos, semelhantes a brancas torres de castelo.
Às cinco da tarde, os miúdos corriam para a traseira do liceu e passavam por um buraco da cerca de arame, numa algazarra. Alguns já tinham terminado as aulas, outros faziam gazeta.
Passavam pelo café Libelinha, que ficava na esquina do último renque de prédios. Aquele era o ponto de reunião dos velhos e dos desempregados, que naquele tempo havia muitos por ali, a queimarem tardes.
O campo ficava perto do liceu, no descampado onde tinham feito aterros e colinas artificiais. No meio do caos de construções incompletas, havia um terreno liso e rectangular. Deveria ter nascido ali um novo prédio, mas ficara apenas aquela plataforma sem serventia. Um buraco pouco profundo, sem drenagem, que as chuvadas enlameavam e o calor do verão deixava seco, com a dureza de chão de pedra. Os miúdos tinham marcado linhas laterais e de meio campo. As balizas eram dois paus espetados, unidos por um fio abaulado no meio, seguro por duas latas vazias.
A bola de cauchu pertencia a um dos miúdos, chamado Tiago, que tinha um drible fantástico e era sempre um dos capitães. Mas havia outros rapazes, alguns mais populares, como António, já alto para os seus 14 anos e que jogava à defesa; o veloz Daniel, que fazia de extremo; ou ainda Pedro, Adelino, Fernando, alguns cábulas, outros sempre alegres.
Era um grupo buliçoso, que enchia o descampado com gritos, ao jogar disputadas partidas. E a melodia chegava ao café Libelinha, apenas abafada pelo ruído dos comboios que passavam junto ao descampado, a 30 metros daquele estádio que a imaginação inventara.



2. Um dos rapazes chamava-se Sebastião, mas ninguém lhe chamava assim, apenas gordo. Aparecera por acaso e ficou a ver os outros a jogar, sentado num montinho de terra de onde dominava as movimentações. Nenhum dos rapazes lhe deu importância, à excepção de Ângelo, que tinha a mesma idade e era vizinho no mesmo prédio.
Sebastião era pesado e lento, falava pouco, amarrado pela sua timidez a uma melancolia que, à primeira vista, parecia ser falta de inteligência. Muitos solitários escondem-se numa mudez que as outras pessoas julgam de forma errada. Os rapazes riam-se de Sebastião, desajeitado e obeso, sobretudo quando tentava segui-los e fazer as mesmas proezas com o seu corpo desobediente: tentar passar pelo buraco da cerca do liceu, o rabo preso no arame e o peito arfando, embaraçado no próprio peso.
Em certa ocasião, um dos jogadores adoeceu. Havia número ímpar de rapazes e não fazia sentido excluir um jogador para formar as duas equipas. Sebastião foi a última escolha. Severo, pouco convencido, António ordenou ao recruta que lhe fora imposto:
“O gordo joga à baliza”.
Podia ter sido a revelação de um talento, mas não foi. Sebastião era demasiado lento e, embora tivesse um volume apreciável, e esticasse os braços tanto quanto podia, o facto é que as bolas passavam, chutadas com precisão para pontos onde não havia nem braço nem perna, antes o luminoso espaço vazio.
Houve então aquele forte pontapé rasteiro. Sebastião estava tão concentrado na bola que tentou mergulhar na sua direcção, em vez de adivinhar a trajectória. O vasto corpo estendeu-se, caiu com estrondo e levantou uma nuvem de poeira. O joelho esfolado no barro endurecido e a pele dos braços em pele viva. A bola passou sob o corpo, antes de Sebastião chegar ao chão. Passou devagar, irónica, para golo.
Chegavam os defesas, para quem a culpa era clara:
“Bolas, gordo, não serves para nada!”, exclamou um deles, como se cuspisse.
E Sebastião, numa lástima, refreava as lágrimas que exigiam rebentar em enxurrada.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

excelente Luís

que maravilha de escrita..

que bem transmites esses sentimentos
adorei

Tenho um filho q foi gordo,

.. a fuga e rejeição do futebol era constante
a tristeza foi frequente

felizmente hoje é um elegante adolescente (disciplina alimentar), mas ainda treme em pensar q poderá voltar a ser a chacota dos outros
Parabéns

7:44 da manhã  

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