3.6.06

Contos do mundial (I): O Hotel (continuação)

Os dois gorilas, ao carregarem escada acima os meus cem quilos, parecia que levavam pela mão um saco de penas. Mesmo assim, estrebuchei e protestei, lembrei-lhes os meus direitos constitucionais e fiz ameaças, nomeadamente de que era primo de uma amiga do embaixador, o que os fez rir. Como estava a entrar em desespero, lembrei-lhes que aquela atitude era uma violação dos tratados da União Europeia, o que os fez rir em grandes gargalhadas.
No meio da confusão, reparei numa cabeça loura que fugidiamente apareceu numa porta entreaberta, para logo desaparecer no interior do quarto. Essa porta fechou-se de imediato, embora sem ruído.
Os enfermeiros lançaram-me para dentro do quarto e fizeram uma busca pouco minuciosa, à procura de bilhetes para jogos. Não encontraram nada e saíram, ainda com substanciais risadas.
Comecei logo a imaginar planos de fuga, mas nenhum deles parecia poder funcionar. Então, senti leves pancadas na minha porta. Fui abrir. Era uma mulher loira, espampanante. Tinha-a visto antes, na sala de refeições. Com gestos conspirativos, entrou pelo meu quarto:
“Chamo-me Conchita Velásquez”, disse ela, falando baixinho, em castelhano. “E sou argentina”.
Conchita chegara ao hotel no dia anterior, para ver os oitavos de final do campeonato. Mas cometera o mesmo erro que eu. Felizmente, também conseguira esconder o seu bilhete do malvado Fassbeander. De repente, estávamos a discutir planos a dois.
“Não posso perder este Argentina-Portugal”, disse ela.
“É um Portugal-Argentina”, esclareci.
A primeira ideia que tivemos foi sair pela porta da frente, aproveitando uma distracção dos guardas. Fizemos um cuidadoso reconhecimento do trajecto, mas depressa vimos que havia sentinelas nos principais pontos de fuga. Gastámos imenso tempo nessas tentativas frustradas e quando nos apercebemos da urgência da situação, faltavam menos de duas horas para o início dos oitavos de final. O plano B parecia mais eficaz. Foi Conchita quem o imaginou, pois tinha estudado cuidadosamente a arquitectura do hotel:
“Há um corredor que vai dar a uma zona de serviço menos frequentada”, explicou ela e eu comecei a observá-la melhor: o seu corpo perfeito, embora pequeno; a pele morena (sim, o cabelo loiro e comprido era pintado); uma certa disposição fogosa, que lhe transmitia um encanto fascinante. Olhei o relógio e disse que faltavam 45 minutos para o início do jogo. Ela disse que não havia mais tempo a perder: pôs ao ombro uma malinha castanha, pegou numa blusa azul e branca e avançou em busca do tal corredor, liderando a nossa evasão. Era uma mulher de armas. Tinha as calças muito justas e as pernas bem desenhadas avançavam com uma determinação que não seria possível alguém travar.
Tal como Conchita previra, passámos facilmente as primeiras barreiras do caminho e conseguimos chegar aos jardins do hotel. Só tivemos azar na última fase da fuga e fomos detectados por um dos dois enfermeiros, que saíra mesmo a essa hora para fumar um cigarro.
Mas já ninguém podia evitar a nossa fuga. Descemos a alameda e encontrámos um táxi. Ordenámos ao taxista que fosse para o estádio, na máxima velocidade, pois só faltava meia hora para o início do jogo. O táxi arrancou e ainda ouvimos os gritos de Fassbaender, que tentava impedir-nos de fugir, correndo atrás do táxi.
Nas imediações do estádio, começámos a ver as claques portuguesa e argentina. E foi então que cometemos um erro fatal: devíamos ter-nos separado, Conchita e eu. Fassbaender nunca nos teria apanhado. Mas não o fizemos, por uma questão sentimental, talvez; nos filmes de evasões, os fugitivos nunca se separam.
Foi na porta 2B que Fassbeander nos capturou. Ele vinha acompanhado de um polícia enorme e sorridente, que lembrava Curd Jurgens. Aliás, era tão parecido com Curd Jurgens, o actor, que julguei ter enlouquecido.
“É preciso impedir estes dois doentes de verem o jogo de futebol”, gritava Fassbeander.
Curd Jurgens, o polícia, olhava para os nossos bilhetes, mas não se comoveu. Acreditara no que lhe dizia o doido Fassbeander, que dava saltinhos nervosos e não se calava. Ainda tentei apelar aos adeptos portugueses que entravam pela porta 2B e Conchita abria os braços, apelando aos argentinos sorridentes que entravam no estádio. Mas Curd Jurgens foi inflexível.
À hora em que devia ter começado o jogo, eu e Conchita estávamos num quarto do hotel anti-mundial, fechados à chave.
Ela tirou os sapatos e deitou-se na cama. Desesperada, começou a chorar baixinho. Aproximei-me dela, comovido.
“Tenho a certeza de que a Argentina vai vencer o jogo”, disse-lhe, para a confortar.
“Portugal é mais forte”, respondeu Conchita Velásquez, com a cara repleta de lágrimas.
Foi naquele preciso momento que compreendi a sua beleza. E, apaixonado, aproximei os meus lábios dos dela e beijei-a longamente, a pensar na melhor maneira de romper a defesa da Argentina.

1 Comments:

Blogger Custódia C. said...

Gostei muito, mesmo muito!

1:09 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home