3.6.06

Contos do Mundial (I): O Hotel (primeira parte)

Não dei pelo erro, porque o hotel estava numa parte fresca e agradável da cidade, rodeado de florestas. Achei estranho que me fizessem assinar tanta papelada no check-in, mas a viagem cansara-me e não reparei nos detalhes. O quarto era fantástico e fiquei contente por o preço ser tão acessível. Larguei o casaco sobre uma cadeira; o bagageiro colocou as malas com cuidado no chão e despediu-se com um sorriso. Antes de me lançar sobre a cama e dormir, ainda tive um baque no coração, uma súbita ansiedade. Corri para o casaco e descansei. Lá estava o bilhete, o precioso bilhete dos oitavos de final. Tinha um dos melhores lugares do estádio para ver o Portugal-Argentina. Enfim, adormeci a imaginar as jogadas do Deco e do Figo, o magnífico golo do Pauleta. A vitória portuguesa e a magia do melhor jogo...
Na manhã seguinte, ao acordar, estranhei o silêncio no hotel e, sobretudo, que não houvesse uma televisão no quarto. Em pleno mundial de futebol, um quarto sem televisão! Era peculiar!
Quando desci para o pequeno-almoço, esqueci o assunto. A sala de refeições estava vazia, excepto o casal de velhos e uma loura espampanante. A comida era magnífica. Regressei ao quarto e descansei. Sentia-me já em estágio para o grande jogo dessa noite, poupando energias.
Às onze, desci para ler os jornais e estranhei que não houvesse jornais. Lembrei-me da televisão e abordei o rapaz na recepção:
“O senhor pode explicar-me porque razão não há televisão no meu quarto?”
O rapaz olhou-me com um ar desconfiado, como se o meu cartão de crédito estivesse na lista negra. Apesar de tudo, insisti:
“E não me pode arranjar aí uns jornais, para ver os resultados do futebol? Nem que seja o Financial Times!”
O tipo olhou para mim com ar alarmado. Empalidecera. Pegou no telefone e chamou um tal de doutor Fassbeander. Estranhei!
Chegou de um corredor lateral aquela figura magricela e agitada. O doutor Fassbeander lembrava Peter Sellers, o actor. Falava com forte pronúncia e tinha um tique nervoso, um súbito espasmo da metade direita da cara, que lhe distorcia os músculos, obrigando-o a uma horrível piscadela de olho.
“O Swarzkopf disse-me que o senhor pediu jornais...”, disse Fassbeander.
“Quem é o Swarzkopf?”
“O rapaz da recepção”.
“Ah!”
“E para que quer os jornais?”
“Para ver os resultados do futebol!”
Ao ouvir aquilo, Fassbaender entrou em transe. Levou as mãos ao cabelo, muito excitado.
“Uma recaída!”, exclamou, como se falasse sozinho.
Foi então que ele apontou para o que estava escrito, em letras garrafais, na recepção, e que eu não vira:
“Hotel anti-mundial. Tranquilidade e retiro. Garantimos aos clientes total isolamento do fanático vício do futebol”.
Ia-me dando uma coisa. Ao chegar ali, estava ensonado e não vira o cartaz. Compreendi que, ao assinar a papelada, na recepção, abdicara da minha liberdade de ver os oitavos de final.
Fassbeander colocou o braço sobre o meu ombro e levou-me para junto da piscina:
Herr Naves, quando concluiu o check-in, fez um pedido de ajuda especializada e colocou-se nas nossas mãos. Como bem sabe, este é um hotel para férias sem futebol. Estará totalmente separado das agitações desse jogo funesto. Esteja tranquilo, sou um psiquiatra encartado e vou libertá-lo do vício do futebol. Você é um adicto em situação grave, aliás, a situação é tão grave como se houvesse aqui drogas duras. Mas temos o remédio”.
Depois, Fassbeander chamou dois enfermeiros:
“Aqui o herr Naves está a ter uma recaída. Levem-no para o quarto e mantenham-no lá fechado. E procurem nas bagagens, vejam se ele tem algum bilhete para jogos do mundial”.
Tremi, ao ouvir aquilo. Felizmente, tinha o bilhete do Portugal-Argentina bem escondido.


(Conseguirá o nosso herói libertar-se do cruel Fassbeander e assistir ao imortal confronto entre as duas melhores equipas do mundial? Quem irá vencer o Portugal-Argentina? Não perca o segundo episódio desta aventura verídica... )