29.4.07

Territórios de Caça (III)


3. Nunca quis vasculhar o conteúdo do dossier que Fárkas entregara à minha guarda, mas não resisti, após um acidente: estava enervado com a simples presença daqueles papéis no meu apartamento. Tinha-os guardado numa gaveta e senti que precisava de um esconderijo menos óbvio. Peguei na pasta, mas segurei-a mal. Caíram objectos de dentro. Folhas. Algumas fotografias intrigantes, indefinidas.
O que primeiro despertou a minha atenção era um poema rabiscado, em letra minúscula, num papel decrépito. Mal se notavam os contornos que o lápis desenhara e que o tempo havia praticamente consumido:

A corrente interminável
prende mil pernas à terra
O ideal socialista
Desta forma realizado
Unidos todos os escravos
Num rio de ferro
Pálida multidão
Sobre a mortalha de neve
Onde não cresce nada

Devagar, hesitante, abri o dossier, para colocar lá dentro os papéis caídos. E vi o que continha: havia mais fotografias. a imagem de uma espécie de palácio de certa dimensão, com um parque à volta, árvores e uma velha torre. Mas, em primeiro plano, o corpo deitado de um homem, vestido com o que parecia ser uniforme prisional; e outra imagem era de inverno, com uma fileira de homens agrilhoados, todos de costas; e ainda outra, mostrava um grupo de indivíduos meio fardados, alguns em tronco nu, obviamente no verão; sorriam; e ainda outra fotografia, pouco nítida, mostrava o que parecia ser uma cela de mosteiro, austera e profusamente iluminada pela janela que o sol brilhante transformara numa mancha disforme de luz.
E, sobretudo, havia folhas soltas, de poemas e cartas, textos escritos com diferentes caligrafias. Um poema chamava-se "Acidente de Trabalho". Estava escrito em letra fininha e metódica, a ocupar o mínimo espaço de uma folha quebradiça onde estavam outras anotações sobre a prisão e os prisioneiros. Alguns nomes, também. Li o poema:

O prisioneiro quase morto
Jazia sob a pedra imensa
Um rio de sangue escorria
E da boca escancarada
Apenas um vago sopro
Que mal se ouvia.
Sem medo no rosto
Nem teve tempo
Para deixar a alma dizer:
Finalmente, a liberdade.

E ainda outro poema, escrito com a mesma caligrafia da folha anterior, mas não assinado. Em cima, em letras grandes, lia-se um título: Pelotão de Fuzilamento.

Seis da manhã
Entre a cinza da aurora
Ouviu-se a súbita
Chicotada de seis espingardas
A estilhaçarem um coração
E eu vi o esplendor do novo dia
A morte da madrugada
E o radioso amanhã*

Fechei a pasta, a tentar reflectir. Sabia que em breve iria abri-la de novo. Fui fazer um chá. Coloquei o dossier sobre a minha mesa, afastando primeiro toda a tralha que tinha em cima (jornais velhos, esboços de textos, a máquina de escrever). Acendi a luz de trabalho e comecei a ler o conteúdo do dossier de Fárkas.
* (nota do tradutor: dos poemas no original húngaro, optou-se por traduzir sobretudo o sentido trágico e político)

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