25.4.07

Territórios de caça (I)


1. Do silêncio triste da tarde abrasada saiu um lamento que se propagou por segundos, acompanhado de um barulho que parecia produzido por um corpo humano a roçar nos degraus da escada ou o som pausado de uma mão que batia na parede. Durou pouco tempo, apenas o suficiente para eu me aperceber da sua estranheza. Mas não me mexi logo. Primeiro, ainda pensei que fosse um murmúrio delirante, vindo da minha sonolência. Ou talvez não passasse de uma vaga brincadeira de crianças. Fiquei imerso num torpor, talvez um minuto inteiro, a ouvir aquele leve murmúrio, semelhante a um coração a pulsar na distância. Se tivesse permanecido ali, sem vontade para investigar, nada haveria para contar nestas páginas, o que seria bem melhor para mim, sem dúvida. Mas a curiosidade levou-me a abrir a porta de minha casa. Saí para o corredor colectivo (a varanda corrida típica dos prédios húngaros) e abri a porta da escada (tarefa que me levou uma eternidade, enquanto escolhia a chave certa de um molho de chaves indistintas). E entrei na escadaria central do prédio.
Vi imediatamente o velho, que escorregava com suavidade, numa posição grotesca: ele tinha um braço esticado, implorava, como quem levanta um peso ou no gesto do afogado que se projecta para fora de água, até perder as forças. E havia naquela cara (o mais intenso de tudo o que vi no relance) o esgar de dor, o terrível sofrimento que se espalhava por toda a expressão humana, a cara dramaticamente alterada, dominada pelos poderosos olhos azuis claros, que me pediam ajuda, muito abertos.
Invadiu-me de súbito a consciência de que aquele homem estava a morrer. Era um facto simples, daquelas circunstâncias às quais não se oferece alternativa. E o moribundo teria uma visão semelhante à minha, embora inversa desta, numa perspectiva confusa e precária: ele percebera certamente o meu olhar de espanto e alarme; viu a minha hesitação. O homem moveu-se com dificuldade e olhou para mim com tal força que julguei ver chispas de impaciência. Tentou falar, mas não entendi o que dissera, embora não fosse incoerente. Então, o velho pronunciou com nitidez a palavra remédio. Eu mantinha a mesma hipnose dos sentidos, fascinado com a inesperada disposição de tudo. O braço do homem movia-se com dificuldade, numa espécie de limbo, procurou o bolso do casaco e retirou duas chaves, que ergueu na minha direcção. Repetiu a palavra "remédio", muito aflito.
Eu aproximei-me dele e quase senti o alento que se dissipava do seu corpo. Nem sequer me lembrei de descer escadas abaixo para pedir ajuda na rua. Só antevia os obstáculos daquele instante. Limitei-me a pegar nas chaves que ele me estendera, numa fraqueza de ânimo sem emoção, e fiquei uma eternidade ao lado do moribundo, a contemplar as chaves, sem saber o que fazer com elas, que portas abriam, que remédios escondiam.
O velho tinha os olhos azuis muito abertos e fez um esforço para falar.
"No meu apartamento", disse ele, ofegante. "No andar por cima do seu, 2b".
Estava pálido como uma folha de papel e parecia à beira de desistir, mas disse tudo o que era necessário: "O remédio... frasco ... na mesa da cozinha".
Corri, num pulo que me surpreendeu. Abri, frenético, a porta da casa dele. As mãos tremiam-me de tal maneira, que falhei a simples tarefa de fazer rodar a chave. Escapava-me o segredo da fechadura nova, com o seu truque na primeira volta. Mal senti alívio quando ouvi o estalido da abertura: invadi o apartamento vazio e escuro; a cozinha era à minha direita; a sombra de um gato gordo escapuliu-se. E ali estava o frasco que procurava. Voei no regresso, escadas abaixo. Pura sorte não ter caído.
O homem engoliu duas cápsulas e, devagar, regressou alguma cor à sua pele.
"Um estúpido esquecimento", explicou, ao recuperar o fôlego. Segurava o frasco na mão: "Devo andar sempre com isto, mas hoje esqueci-me, e com este calor..."
Recompusera-se um pouco: "Mais um minuto e morria aqui", disse o velho.
Quando se sentiu melhor, acompanhei-o até ao apartamento. Foi uma subida penosa, mas consegui ampará-lo até lá. Claro, não o devia ter feito, mas analisando bem, limitei-me a obedecer à sua vontade. Dali chamei a emergência, usando o telefone dele.
"Se sobreviver, serei certamente internado", disse o velho. "Preciso de outro favor seu".
Dispus-me a ajudar em tudo.
Ordenou-me que abrisse uma gaveta e procurasse um dossier. Encontrei-o e ele pediu-me que o guardasse em minha casa, durante o período em que estivesse fora.
"Tenho receio de que alguém possa...". Só prosseguiu após uma pausa para pensar na palavra certa: "...fazer uma visita ao meu apartamento vazio".
A segurar os documentos, sentei-me do outro lado da sala.
"Esse dossier contém recordações importantes para mim", acrescentou o velho.
"Comigo, isto estará em segurança", respondi, mostrando-lhe a pasta.
Ficámos os dois em silêncio, até que se ouviram passos na escada. A equipa de emergência médica chegava.
"Nem me apresentei", disse o velho, numa voz arrastada e fria. "Chamo-me Fárkas e devo-lhe a minha vida, senhor Kormányos".
Nem tive tempo para me surpreender com o facto dele saber o meu nome. Os paramédicos tinham chegado. Fizeram o seu trabalho e levaram Fárkas numa cadeira de rodas. A comoção atraíra a curiosidade de outros vizinhos. A porta foi fechada e a velhota do apartamento ao lado ficou com o gato e com as chaves.
E só então dei comigo sozinho, nas escadas, a descer para o meu andar, com um dossier desconhecido na mão.

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5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

.... e .... ?

8:47 da tarde  
Blogger CPrice said...

desejosa de continuar a ler eu ..
:)

8:52 da manhã  
Blogger Luis Naves said...

e...continua. sei que é difícil experimentar escrever uma novela num blogue, mas é disto que se trata. Vou tentar que os leitores se habituem a vir aqui ler mais pedaços da bnovela e, com as etiquetas, podem ler partes atrasadas. A estrutura ~do texto não é muito rígida e permite deambulações que sriam aborrecidas num livro.

10:27 da manhã  
Blogger Luis Naves said...

desculpem as gralhas no comentário

10:28 da manhã  
Blogger CPrice said...

cá estarei para acompanhar .. :)

4:28 da tarde  

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