28.4.07

Territórios de caça (II)


2. O calor chegara definitivamente e eu pairava numa apatia sem nexo. Por vezes, no vazio, olhava com curiosidade para o dossier que o meu vizinho me entregara. Mas não o abri. Guardei-o numa gaveta, embora a sua presença oculta me queimasse os sentidos.
Após sofrer o colapso e ao entregar-me aqueles documentos, Fárkas mostrara saber o meu nome. Confiar em mim significava também que ele sabia verdadeiramente quem eu era. A estranheza dessa revelação só assentou na minha consciência nos dias seguintes ao incidente. Por um instante, parecera-me existir ali cálculo ou uma dose de encenação; ao pensar mais no assunto, compreendi que o velho agira com a intenção de mostrar que me conhecia e compreendia. O meu nome fora pronunciado com volúpia, apesar da aflição em que ele devia estar na altura.
À partida, não devia ser estranho que um vizinho soubesse o nome de outro. Mas Fárkas mudara-se para aquele prédio duas semanas antes (daí a fechadura nova). Não tive curiosidade sobre essa mudança, porque eu próprio ainda não tinha um mês naquele apartamento. Apenas soube do facto, sem qualquer interesse particular. E, no entanto, aquele desconhecido interessara-se por mim. Talvez tivesse conhecimento das minhas actuais dificuldades; enfim, sabia, certamente, pois existira um leve ar zombeteiro na expressão dele.
Seria tudo fabricado pela minha imaginação ou um complexo aviso? Que Fárkas conhecia o meu nome, ele próprio o confessara. E eu não tinha colocado identificação na caixa de correio, nem nas campainhas da porta. Talvez ele me conhecesse dos meus artigos no jornal regional, mas, enfim, isso ainda era mais absurdo: que género de curiosidade podiam despertar esses textos? Talvez já nos tivéssemos cruzado, pensei, a certo ponto, mas da minha memória não surgia nenhum rasto de familiaridade. É incómodo sermos conhecidos de alguém que não conhecemos e essa comichão tornara-me impaciente.
Cansei-me de fazer estas especulações e decidi encontrar algum indício que pudesse esclarecer o caso. A primeira pessoa que procurei foi a idosa que ficara com o gato gordo de Fárkas. Por sorte, quando subi ao andar de cima, a mulher estava a fumar um cigarro, na varanda colectiva: sentara-se numa cadeira, junto à porta; vestia um robe antigo e imundo; era gorda, disforme, e o gato deitara-se a seus pés, estirado no calor, lânguido e perdido no prazer do sono.
Cumprimentei a mulher e tentei iniciar uma conversa: comecei por uma mentira pouco hábil, disse que tinha subido à procura do senhor que se sentira mal. Perguntei-lhe se ele já tinha regressado.
A mulher largou uma risada e olhou para mim com desconfiança trocista:
"Veio aqui um amigo dele", disse ela. "Deu-me dinheiro para comprar comida para o gato e explicou que o vizinho deve ter alta na próxima semana. E que está muito melhor".
Balbuciei um agradecimento. Quase bati em retirada, mas não resisti a mais um detalhe de curiosidade:
"E a senhora sabe o que faz o nosso vizinho?"
Ela largou uma gargalhada:
"Tem idade para estar reformado".
Senti-me estúpido e, sobretudo, sabia estar a ser impertinente, a rebaixar-me a mexericos. Devo ter corado de embaraço e quis sair dali, mas era tarde. A velha interessara-se por mim, não devia ter muitas ocasiões para falar com outras pessoas:
"Um homem distinto e educado", largou ela, referindo-se a Fárkas. "Parece ter pronúncia de Budapeste. Juraria! Mas é arrumado, de hábitos regulares, como um padre. Talvez seja religioso..."
"Mas a senhora não sabe se ele é padre..."
Encolheu os ombros, disse que não sabia. E, depois, tagarelou por ali fora, embrenhando-se na sua própria existência, pois tornara-se desinteressante falar sobre o novo vizinho, sobre o qual, vendo bem, ela nada sabia, senão os óbvios aspectos físicos, exteriores e superficiais em que eu também reparara.
Quando me cansei da conversa, perguntei à minha vizinha se ele, Fárkas, tinha feito alguma pergunta sobre mim. Ela pareceu surpreendida. Fez um gesto de genuína negação.
"Ele foi sempre amável, mas nunca teve qualquer curiosidade em relação às pessoas que vivem neste prédio".

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4 Comments:

Blogger kreztmach said...

brilhante!
aguardo a continuação. ;)

8:31 da tarde  
Blogger Luis Naves said...

obrigado pelo comentário. a história continuará nos próximos dias

9:08 da tarde  
Blogger Salsa said...

a escrita insiste, enfim.

9:45 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

... e...

10:50 da manhã  

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