3.2.07

O Samurai (segunda parte)

No texto anterior, conhecemos algumas das personagens. Entretanto, surgiu este turista japonês, um velhinho com ar inofensivo
...Dizia eu, estava sentado no meu cantinho, quando apareceu aquele homem minúsculo. Era velho. Um turista japonês, via-se. Olhou para o interior da leitaria e entrou. Só reparei porque o meu próprio olhar passeava por coisa nenhuma, à bolina.
O japonês era antigo, mas contraditoriamente moderno, observei. Como se ele não conseguisse determinar em que época estava. Pele encarquilhada, ténis Nike e máquina fotográfica minúscula. Sem falar no boné de basebol. De resto, de banalidade arrasadora, semelhante a qualquer turista japonês. Era também polido, ou seja, fazia gestos poupados, como se pedisse licença à mão direita para mexer a esquerda. Sentou-se na mesa bem no meio do estabelecimento, talvez fascinado com a iluminação e a limpeza. Ainda não o referi, mas o pronto-a-comer da Alice é de uma limpeza exemplar e atrai clientela de funcionários do comércio das redondezas, sobretudo às horas de refeição; a partir do meio-dia, começa o corrupio; é a essa hora que me vou embora, pois raramente tenho fome e vou comendo ao longo do dia, a fintar a hora das refeições.
O velho sentou-se e cumprimentou os presentes com uma curta vénia, como se estivesse em casa. Mas, vendo melhor, parecia confuso.
Aproximou-se o brasileiro, que é o empregado do estabelecimento, muito útil quando se organiza o bufete. Digressão desnecessária: o bufete é o grande truque da Alice, o cerne do negócio. Teoricamente, as pessoas podem tirar a quantidade de comida que desejam, mas na realidade é muito menos em conta comer assim, já que os humanos têm mais olhos que barriga. Julgam estar a pagar pelas enormes quantidades que pretendem devorar, mas acabam por pagar um valor que à partida cobre mais do que aquilo efectivamente devorado.
E foi num certo momento, num ponto do universo em que não acontecia nada, que se deu o extraordinário caso. O japonês ergueu-se, com dignidade, num gesto solene. E, transformando o braço direito numa espada imaginária, rompeu a atmosfera com a lâmina do pensamento, gritando: “I’m Samurai”. Não o fez com irritação, ou algo assim, era antes uma afirmação feliz. Um anúncio, como se tivesse gritado, “vou casar”. A palavra samurai foi dita num tom de chicote, mas igualmente com volúpia, pois prolongava-se o “a” e também o “i”. E todos ficaram a olhar para aquela espantosa figura que irrompera assim, sem aviso, pelas nossas vidas banais.
O brasileiro encolheu-se. Apesar de não haver senão uma espada imaginária e um velho digno, embora pequeno; apesar de tudo, inofensivo, de pé ao lado da mesa vazia. No resto da sala pairava o espanto, como se fosse perfume de comida. Com a excepção de Carriço, que tratava do fumegante bufete, ao fundo, e nem se apercebera da comoção.
Alice foi a primeira a reagir:
“Está a sentir-se mal?”, perguntou ela ao japonês, de trás do balcão, na esperança vaga do velho compreender a pergunta.
O turista olhou para Alice e, de súbito, fez uma vénia, acrescentando algo incompreensível, dito na própria língua, mas que podia muito bem ser “Oh! Encantadora musa que encontro aqui neste antro de ciclopes!”.
Senti-me na obrigação de fazer algo. O brasileiro afastara-se, com medo, e eu aproximei-me. Dirigi-me em inglês ao idoso:
“Good Morning, sir”, disse, de modo algo incoerente, pois já passava do meio-dia.
O japonês ficou impressionado com a minha intervenção. Observou-me. Percebi, por um instante que se prolongava, que ele perdera a confiança. Claudicava.
“I’m samurai”, balbuciou, desta vez num tom de voz que se sumia.
Apagava-se, rendia-se.
E, depois, num lamento:
“I’m samurai”.
Só então se sentou, mas com elegância, num gesto comovente.
Iniciei conversação, fiz perguntas, sempre num inglês que tentava pronunciar com cuidado, para que ele percebesse. Perguntei-lhe se queria comer, se precisava de ajuda, se estava doente. Ele respondia em japonês, baixava a cabeça no final de cada frase. Sorria imenso. Era evidente que não falava inglês.
Fui traduzindo, embora não percebesse nada do que ele dizia.
“É um nobre japonês, íntimo do próprio imperador”, expliquei...
Esta história terá um epílogo

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