2.1.07

Fragmentos do passado (terceiro dia)

Perdemos parte das colheitas e alguns dos animais que sobram no estábulo estão a morrer. Este inverno tem sido duro. Inventei hoje que estamos em Janeiro e comecei a contar os dias. Portanto, recuperei a memória da escrita no dia 1 de Janeiro, o que significa que hoje é dia 3. Mas não sei de que ano. E ao começar a contagem ao acaso, certamente não estaremos em Janeiro. Quem sabe? Agora, os invernos são mais compridos do que no passado. O clima mudou. As plantas e os animais morrem por causa disso.
Hoje, sentei-me junto da fogueira na cozinha e comecei a ensinar a criança. Ensinei-lhe algumas letras e ela repetia. Parece inteligente. Talvez seja minha filha... Ao escrever esta brincadeira, desatei-me a rir. Não me lembro de ter rido, certamente não me ri durante muitos meses, talvez até anos.
A nossa existência é feita de incerteza sobre a passagem do tempo. Isso confunde-me. Tento voltar ao princípio, avaliar certas dimensões daquilo que passou, mas fracasso sempre: as coisas amontoam-se. Demorarei muito tempo a ensinar a menina, demasiado, talvez. Amanhã, posso perder a minha memória das letras escritas, não sei.
A mulher Leonor ficou a olhar para nós os dois, enquanto eu ensinava a criança. Parecia desconfiada, como se eu estivesse a fazer alguma coisa de errado. Até que não sustentei aquele olhar de censura e disse-lhe, enquanto apontava para a criança:
“Se esta menina souber ler, nem tudo estará perdido”.
“Os coelhos estão a morrer...”, respondeu ela. Foi como se me dissesse que estava tudo perdido, que tudo era inútil, que mais valia desistirmos.
Depois, encolheu os ombros e saiu da cozinha.
Está tudo perdido, talvez, mas já não existe a “radiação”. Sei disso porque desapareceram as luzes brilhantes no céu nocturno. Significa que a criança terá memória.
Não será como nós, os fantasmas. Somos como sombras, que se arrastam numa penumbra.
Na aldeia, há cada vez menos gente. Algumas casas continuam a ter habitantes, vejo a luz das lareiras acesas, o único aquecimento que temos. Às vezes, ouço os rebanhos patéticos, que alguém conduz até aos pastos mais altos. E também nos cruzamos, com medo uns dos outros, sem nos reconhecermos. Há vozes dispersas.
Muitas casas estão desabitadas, mas também estas têm ruídos. As pedras parecem lamentar-se e as portas que restam por vezes movem-se, como se houvesse dedos a empurrá-las. Choram os telhados e a água corre no interior, como se fosse sangue.
A angústia do que fomos transforma cada casa e cada um de nós num poço fundo e escuro, do qual tentamos retirar a água lamacenta das nossas memórias perdidas.
Mas há duas outras crianças na aldeia. Devia tentar ensinar-lhes a leitura, fazer uma escola, enquanto durasse esta minha lembrança das letras. Mais tarde, poderiam aprender sozinhas. Mas antes, tenho de encontrar mais livros. Amanhã, irei ao que resta da cidade. Não é longe. Existe o perigo dos lobos, claro, e o frio e a incerteza do caminho estranho.

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Gostei muito. Bom ano!

6:11 da tarde  
Blogger luisnaves said...

bom ano, sofia, a história pode ser prolongada, falta o final

1:13 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Pois, eu estou à espera.

9:09 da tarde  

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