2.2.07

O samurai (primeira parte)

Ainda hoje, no meu bairro, é lembrada a progenitora da Alice, a Dona Felismina, que deu em herança à filha o pequeno estabelecimento, uma leitaria entretanto modernizada em pronto-a-comer. A mãe da Alice era uma mulher daquelas chamadas de armas, ou seja, mais dominadora do que mandaria o seu corpo franzino. Parecia a Edith Piaf e sei que, em jovem, incendiou numerosos corações galantes; mas, enfim, só a conheci já gasta. Parte da história também será bordada a lenda, pois sabemos como tudo nesta cidade acaba sendo um pouco romanceado.
Quem verdadeiramente interessa é Alice, que terá essas origens curiosas, embora pertençam a um passado que já nem imaginamos. E quem sabe o que se esconde em gerações ainda mais remotas? O facto é que ela tem lábios grossos, nariz achatado, o traseiro algo proeminente, caracóis enrolados no cabelo cor de azeitona escura...
Na aparência, é uma mulher não muito diferente das outras: talvez um pouco mais redonda de carnes, o que faz sonhar alguns homens, entre eles Carriço, discreto apaixonado e lugar-tenente do estabelecimento; o seu homem, digamos assim, macambúzio e soturno, mas também ciumento, sobretudo quando vê possíveis rivais a cobiçarem Alice com olhares famintos, nem que seja macho de passagem, um zé-ninguém que jamais voltará.
Alice não é alta nem baixa, não é velha nem nova. Anda sempre desmazelada, sem pinturas ou jóias; veste avental com nódoas. Mas não precisa de ornamentos, tendo aqueles olhos verdes, esmeraldas reais, embora a cor já esteja esbatida, enfim, porque o tempo passa. Será ela bonita, verdadeiramente bonita? Penso que não, pelo menos do ponto de vista do gosto dominante nestas matérias, a preferência que podemos ver em qualquer revista de moda, corpos a tira-linhas, sem a redondez que pessoas como eu acham mais sensual. Alice não serviria para modelo de pele retocada a photoshop e cabelo ao vento. Ela tem cintura gorda, pregas de carne em torno do umbigo, o que pessoalmente acho muito de cobiçar; e, no seu peito subido e largo apetece encostar a cara, para se ouvir aquele coraçãozinho palpitante, a respiração acelerada; sim, confesso, sei bem como podem aqueles seios enlouquecer um homem. Conheço Alice há dez anos, por dentro e por fora, andámos enrolados por alguns frenéticos meses, embora ela não tivesse qualquer ilusão sobre as minhas intenções, que eram inteiramente desonestas. Talvez por isso tenha sido possível mantermos esta relação amigável. Ela sabe que me faltam alguns parafusos, talvez suspire por mim, num ou noutro pensamento, mas nunca o mostra. É apenas afável comigo. E não tenho dúvidas de que Carriço, que apareceu muito depois, saiba do nosso passado comum, embora nada possa conhecer sobre os segredos murmurados, as frases de amantes que trocámos, ela e eu. E não pode imaginar as lágrimas que ela gastou comigo.
Podia evitar a leitaria, pois quase não suporto a desconfiança e a inveja de Carriço e talvez seja cruel alimentar dessa forma as lembranças de Alice. Mas acabo por me sentar todas as manhãs no estabelecimento, a olhar o pequeno mundo que por ali passa, a rabiscar pobres poemas; bebo um ou dois cafés, leio o Diário de Notícias, como uns salgadinhos, vou bebericando imperiais ou, ocasionalmente, uma aguardente. Enfim, medito.
Naquele dia, também não tinha nada para fazer e transformara, como de costume, a mesa do cantinho no meu escritório. Já agora, para que percebam a razão de tanto tempo perdido, informo que sou uma espécie de inútil: queria ser poeta, mas falhei na vocação; o meu pai era industrial; deixou fortuna assinalável, investida em bolsa. O meu trabalho, digamos assim, é estar atento ao sobe e desce das cotações, vender em alta e comprar em baixa, o trivial, que dá para viver modestamente. Não faço descontos nem loucuras, sou solteirão. Vivo no limbo feliz da decadência burguesa, numa casa antiga, com vista para o passado e também para o rio e o seu estuário.
Os meus investimentos são de pouca ambição, e falo metaforicamente. Pode parecer estranha, esta ideia de alguém querer apenas viver o dia-a-dia, ao ritmo de um mercado sem lógica, despreocupado em relação a quase tudo e numa perspectiva constante de não possuir futuro. Aliás, essa é a minha única perspectiva constante. Antes assim, viver sem amar nada em particular, olhando melancolicamente o que podia ter acontecido, se por hipótese improvável tivesse acontecido.
Dizia eu, estava sentado no meu cantinho, quando apareceu aquele homem minúsculo. Era velho. Um turista japonês, via-se. Olhou para o interior da leitaria e entrou. Só reparei porque o meu próprio olhar passeava por coisa nenhuma, à bolina.
Este conto tem continuação, a publicar em breve

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