12.1.07

Dáqui

Foi o cabelo, aquele cabelo escorrido - viscoso, pensou Xavier quando teve tempo para pensar nisso - que o fez olhar segunda vez para o homem de idade na esplanada. Vinha meio trôpego, agarrado ao braço de uma mulher mais nova. O cabelo branco tão liso. Era o Dáqui, teve a certeza.
“Dáqui, Dáqui”, gritavam os míudos no páteo, quando ele passava a caminho da sala dos professores. Mas ele nunca se voltava. Prosseguia em passo enérgico, o cabelo negro escorrido e penteado para trás, a fazer porte de artista. A fazer de Dáli. Eles riam-se à socapa e lançavam aqueles gritos de dáqui, mas nunca olhavam para o professor. Gritavam como se o fizessem apenas entre si. Como se aquela fosse apenas mais um das suas algazarras sem sentido.
Qual era mesmo o nome dele, perguntou-se Xavier, olhando o par silencioso na esplanada. Não se lembrava, não valia a pena. Saiu de trás do balcão e caminhou na direcção da mesa, lá fora. Na direcção do Dáqui, o antigo professor de trabalho manuais. Reconhecê-lo-ia? Estremeceu ao pensar nisso. Rir-se-ia dele outra vez? “Então é isto que hoje fazes? Não me espanta”, diria o Dáqui, a escancarar a boca, a pôr as mãos nas ancas e a rir, a rir. A rir como doido.
Isso não é uma linha, é um linhão. O Dáqui a dizer aquilo e a rir. Há quantos anos? Vinte? Vinte e cinco? Talvez vinte e cinco, sim. Como o tempo passa a correr. Servir umas cervejas no Verão, fechar no Inverno. E outra vez a Primavera e o Verão, e mais cervejas, e mais risos na esplanada. O tempo a correr. A cerveja a correr. Passaram 25 anos, está todo branco o cabelo do Dáqui.
Era primavera, talvez. Nesse dia o desenho era uma composição abstracta com figuras geométricas, e Xavier estava lá também, no meio dos outros, na aula silenciosa, às voltas com as linhas rectas e as curvas, a montar um universo só dele, naquelas linhas todas entrelaçadas na folha de papel cavalinho. O pior veio depois. Passem-me isso a tinta da china, não quero borrões. Quem borrar faz tudo outra vez. As ordens do Dáqui. E ele com todo o cuidado a lutar com o compasso e o transferidor, a pôr o tinteiro longe, na outra ponta do estirador, a molhar o bico da caneta com todo o cuidado. A suar, a suar. E a mão, de súbito, a tremer-lhe naquela passagem lixada entre curvas tangenciais. O pingo negro. Céus, um pingo enorme, a manchar aquele cosmos de linhas que era só dele e que não conseguiria nunca mais repetir.
Sentira lágrimas nos olhos. Lembrava-se tão bem, tão nitidamente, enquanto caminhava agora em passos lentos, tão lentos, na direcção dos cabelos brancos na esplanada.
Tomara uma decisão rápida antes que o professor desse pela tragédia. Engrossar a linha, cobrir a gota negra, metê-la no desenho, confundi-la, apagá-la para sempre na curva grossa de uma linha. Uma qualquer. E uma delas começou a alargar e a engrossar, enquanto ele passava a caneta uma e outra vez, a linha a destacar-se cada vez mais das outras todas, como uma marca estranha, larga, no papel. A ficar... um linhão. Isso não é uma linha, é um linhão. O Dáqui estava na sua frente a rir, a rir. A rir como um doido e a olhar para o seu desenho. Lembrava-se das lágrimas a correr, manchas a alastrar-lhe nos olhos, deixara de ver as linhas curvas, as rectas, aquela mais larga, a do pingo, e todo aquele universo que tinha sido só dele.
Que quereria o velho? Uma cerveja, talvez. Beberia cerveja com esta idade? Decidiu ignorá-lo. Olhou apenas para a mulher, disse bom dia, perguntou o que iam desejar.
Ela, um chá. O pai, nada, não está bem de saúde, ouviu-a dizer, enquanto fazia um gesto vago, apontando a própria cabeça. Xavier olhou-o, então, com surpresa. E, quando o fez, só encontrou uns olhos vazios, já despegados de tudo. Olhos sem vida, alheios ao mar ali em frente, à filha que retocava os lábios distraída, a ele próprio, que, de regresso ao balcão da esplanada, de costas voltadas para o par silencioso, ia agora a sorrir, quase feliz.

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Belo texto, um olhar sobre os dramas que o tempo tornou relativos ou inócuos face aos que sobraram como a velhice. Um texto onde a saudade toma carne, um texto que explica porque é que às vezez choramos por nós próprios, pelas nossas pequenas-grandes coisas perdidas. Um texto onde enfim se lamenta que seja preciso envelhecer para tudo ser compreendido e perdoado, quando porventura é já tarde. Um texto sobre a alma das pequenas coisas. Um texto-aviso.

1:26 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Belo texto, um olhar sobre os dramas que o tempo tornou relativos ou inócuos face aos que sobraram como a velhice. Um texto onde a saudade toma carne, um texto que explica porque é que às vezez choramos por nós próprios, pelas nossas pequenas-grandes coisas perdidas. Um texto onde enfim se lamenta que seja preciso envelhecer para tudo ser compreendido e perdoado, quando porventura é já tarde. Um texto

1:30 da tarde  

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