1.1.07

Fragmentos do passado (segundo dia)


(...) Descobri que a criança não se esquece das coisas que aprende. Deve ter, no máximo, uns cinco anos, mas pouco lhe conseguimos ensinar. A menina é filha da mulher chamada Leonor, que deve ser casada comigo ou minha irmã. Não sei quem será o pai da menina: posso ser eu, que durmo mais vezes com Leonor, ou pode ser António, talvez meu irmão ou marido dela, não sei. Ele dorme menos vezes com ela, por isso digo que Leonor, no tempo passado, era a minha mulher.
Chegámos juntos a esta aldeia, os três. Viajámos numa espécie de veículo, que andava sozinho por estradas que ainda existem, só era preciso segurar uma roda e fazer com que oscilasse para a direita e para a esquerda. Não me peçam para descrever melhor a máquina, porque me esqueci por completo como funcionava. Está a apodrecer nas redondezas. Por vezes, tiramos dela materiais, usámos o combustível para nos aquecermos.
Se um dia conseguir que a criança aprenda a ler (talvez esta memória persista algum tempo, as lembranças do passado vão e vêm, são como as ondas ou como o vento que abana a floresta), se ela souber ler, podemos encontrar livros e poderá aprender o que sabíamos e o que se perdeu, como funcionavam as máquinas e aquilo que fazíamos com elas. As crianças nascidas depois de o passado não se esquecem daquilo que aprendem.
Comecei a escrever isto depois de ter encontrado, numa gaveta velha, um caderno de papel e um lápis. O caderno só tinha uma folha escrita. Quando se acabar o papel ou o lápis, deixarei de poder contar a nossa vida, mas também é possível que me esqueça outra vez de como se escreve. O António soube escrever, durante dois dias. Foi no Verão (talvez este ano, ou no anterior) e usou este mesmo caderno. Dizia que no passado (ele chamava a esse tempo o mundo perfeito) houve uma guerra. Explodiram bombas numa terra distante. E seguiu-se uma terrível noite, que se prolongou e que mudou o clima; perderam-se as colheitas, houve muita fome e invasões dos países que tinham guardado alimentos. Mas o pior foi a "radiação", que não sei o que seja. Atingiu toda a gente, matou quase todos e aos que sobreviveram mexeu com os cérebros. Foi o que ele escreveu.
A decadência prolongou-se por algum tempo, provavelmente anos, não sei quantos. Por vezes, sonho com essas memórias, ou elas surgem, inesperadas, como num oceano oculto sob uma crosta gelada. Ao mover-se a água por baixo, emergem por vezes minúsculas lagoas viscosas, que congelam quase imediatamente.
Lembro-me, por exemplo, de uma sala branca e de uma luz que parecia um sol. E à minha volta estavam pessoas vestidas de verde e com a boca tapada por lenços. E eu peguei numa faca e comecei a cortar um corpo humano vivo, que largava pouco sangue. Fiz um longo corte e abri o peito e, dentro, como se fosse um relógio incompreensível, movia-se vida, e eu sabia ler cada um daqueles órgãos, compreendia tudo. E com o dedo, protegido por uma luva muito justa, apontei para uma bola branca que não devia estar ali, e levei a faca até ao ponto branco. Fui eu a fazer isso.
Não me lembro de muito mais porque, segundo escreveu António, depois da radiação, começámos a esquecer-nos das coisas.
Foi um processo lento, uma agonia. Aquele mundo, o do passado, baseava-se em máquinas e as pessoas foram esquecendo, devagar, como elas funcionavam. Depois, esqueceram quem eram as outras pessoas. E, no fim, esqueceram-se da sua própria identidade.
Não sei o que fiz à folha que o António escreveu neste caderno, mas lembro-me de a ter rasgado. Acho que o fiz porque a mulher chamada Leonor dormiu ontem com ele e eu senti uma raiva. Leonor dormiu uma vez com um homem da aldeia e eu entrei em fúria. Acho que matei o homem. Não farei isso a António, mas rasguei a folha que ele conseguiu ainda escrever no caderno, na véspera de se esquecer outra vez como se faz a escrita. Arranquei-lhe o único passado que lhe restava e, por isso, ele passou a ser nada.
Enfim, ele ainda se lembra de números. Diz que era físico, antes do passado, e lembra-se de fórmulas matemáticas, mas não sabe para que serviam. São amontoados de símbolos abstractos e sem sentido. Às vezes, recita as fórmulas, como se repetir palavras sem nexo pudesse levar a uma espécie de entendimento das coisas.

5 Comments:

Blogger JCA said...

Uff,Luis!Até estou cansado!Grande texto.(tem aqui, e ali, um toque "à Lobo Antunes)vai-me desculpar,mas é aquilo que acho.
Um abraço.

1:51 da tarde  
Blogger JCA said...

Uff,Luis!Até estou cansado!Grande texto.(tem aqui, e ali, um toque "à Lobo Antunes)vai-me desculpar,mas é aquilo que acho.
Um abraço.

1:51 da tarde  
Blogger Cristina Leimart said...

Começaste bem o ano com esta história, Luís.
Bjns

2:01 da tarde  
Blogger luisnaves said...

Vamos ver se consigo continuar isto, dar-lhe um meio e sobretudo um fim. Falo da história, claro, pois o ano, será óptimo.

6:23 da tarde  
Blogger luisnaves said...

só agora vi o comentário de ergela, que também agradeço, embora discorde do elogio, quando fala do toque à lobo antunes (LB). na minha opinião, LB é um grande original e o seu estilo tem vocabulário riquíssimo, ritmo alucinante, fragmentação narrativa e mistura constante de tempos e vozes. nenhuma destas características existe neste texto. mas, claro, o essencial é que o conto seja lido e agrade aos leitores, por ter algum conteúdo relevante.

12:57 da tarde  

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