6.2.07

O samurai (epílogo)

(Numa leitaria portuguesa entra um velhinho japonês, que grita "I'm samurai". O narrador começa a inventar-lhe um passado).
Aquela minha explicação interessou a toda a gente. Trocava umas palavras com o samurai e ia construindo a história dele, feita de pagodes imaginários, jardins suspensos no tempo, levitação zen. Excitara a imaginação e fui por ali fora: falei de mundos inventados, um pouco em busca daquilo que autenticamente me interessa nas pessoas, ou seja, a sua vida interior fantasiada. E o velho turista transformara-se numa espécie de instrumento da minha divagação, mistura de territórios e paisagens utópicas, idealismo impreciso.
Sentara-me na mesa do velho e Alice sentara-se ao nosso lado. Os outros (o brasileiro, Carriço, os empregados, a clientela habitual) rodeavam-nos, de pé, boquiabertos perante o mundo que eu lhes abria através daquela personagem, que todos já viam de quimono florido e espada trespassante.
Ia por ali fora, quando Alice fez um gesto imperial, cortando-me a palavra:
“Desde quando é que falas japonês?”, perguntou-me ela.
Fizera aquele seu movimento de torcer o nariz, que eu tão bem conhecia. Era quase mesmo o nariz a torcer-se, embora não fosse assim exactamente. Os olhos verdes cintilavam de cepticismo, desconfiados. Era o mesmo exacto olhar que me deitara naquela tarde de Verão em que finalmente percebera as minhas manobras defensivas, que as palavras de amor não passavam de pequenas armadilhas, tão imaginárias como os pagodes e os jardins e o samurai, ainda jovem, em busca da sua massacrada família, a passear pela cidade incinerada que uma bomba atómica devastara tão completamente.
“Pois, efectivamente, não falo japonês”, confessei.
Na sensual boca de Alice tremia um sorriso. Ela olhou-me, a lamentar a minha loucura, mas com sinais de brando carinho e suave amizade, apesar da censura na expressão.
“Então, é apenas um velho perdido da sua excursão”, sentenciou.
O samurai envelhecera subitamente aos nossos olhos. As rugas de pergaminho eram mais fundas, como mapas de meandros labirínticos. E os olhos baços pulsavam de espanto, surpresa, solidão.
Então, Alice tirou o telemóvel de um bolso no avental. Depois, removeu o avental, colocando-se em roupa civil. E surgiu a nossos olhos em blusa com decote e uma minúscula corrente de ouro ao pescoço, a santinha de alguns centímetros dançando entre as clavículas salientes. E o busto dela, que respirava, e onde fixámos os olhos, eu e também Carriço, e o velho samurai e igualmente um afortunado de um cliente, que estava de pé atrás dela e espreitava ainda mais um pouco do que nós. Alice chamou a esquadra, atenderam, ela explicou tudo, desligou o aparelho e ordenou rapidamente que preparassem um prato para o japonês. “Coitadinho”, disse, “deve estar cheio de fome”. Finalmente, sorrindo, segurou a mão do velho, segurou-a entre as suas próprias mãos e como que o embalou assim, num maternal veludo. “O pobre do samurai, perdido dos seus”!
A polícia chegou pouco depois, dois agentes, um deles uma rapariga nova (também nova no bairro, devo acrescentar, eu que adoro mulheres de farda estava a vê-la pela primeira vez); e era bonita, com o cabelo enrolado debaixo do boné de pala, o uniforme que lhe disfarçava as curvas desgraçantes.
Depressa as duas mulheres combinaram uma acção, tiniam pequenos telemóveis, interrogavam-se hotéis e grupos excursionistas, enquanto nós, os homens, entretínhamos o felizardo polícia, pois devia ser duro andar na ronda com aquela magnífica colega, arranjar temas de conversação que não parecessem forçados, manter sempre a postura de herói sem parecer demasiado protector, porque as mulheres tendem a rebelar-se quando somos demasiado protectores, embora gostem disso, o que parece paradoxal, como quase tudo nas mulheres. O agente compreendeu a nossa solidariedade e emborcou uma pinga que o Carriço desencantou de propósito. Demos também um copo ao velho samurai, que tinha já comido parte da comida no prato e, ao beber a pinga, se mostrou contente, dizendo algo num japonês que nos pareceu adequado elogio.
Vieram buscá-lo daí a meia hora, outro japonês que partilhou connosco os motivos de tanta aventura: o velho perdera-se da sua excursão, tal como adivinhara Alice. Era idoso e ficara confuso, não falando a língua local. E ficámos a matutar como deve ser difícil viajar assim. E, ao sair do estabelecimento, o velho olhou para toda a gente, com um largo sorriso, os olhos embaciados. Fez uma vénia e disse, num agradecimento:
“I’m samurai”.
E também inclinámos a cabeça, por respeito à única frase que ele sabia dizer fora da sua língua.

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