10.12.06

Historieta de Natal 1

Já fora criada uma delegação de moradores que reclamara devidamente – na polícia, junto do gabinete de apoio ao munícipe, na defesa do consumidor, através da linha SOS Ambiente. Porém, a situação persistia: daquele canto da praceta emanava sem piedade um cheiro semelhante ao das águas-ruças entornadas em dias quentes nos ribeiritos da Beira-Baixa. Empestava a via pública e alargava os seus efeitos aos espaços privados, no mínimo até ao nível do segundo piso das habitações. Com a exaltação da quadra os narizes andavam mais sensíveis, e o fedor ganhava relevância suficiente para sonegar a residentes e passantes o direito de deslumbre com o fulgor luminoso das montras.
Francisco esfregou as mãos grossas, de nós articulares enormes, disformes, e ficou a mirar as pernas das calças com o olhar vítreo de um zarro. De alto a baixo vestido de castanho. Os pés e a cabeça pontuados de crostas, na boca algumas, também. Um rasgão de vento frio fê-lo recostar-se melhor no canto do prédio, a uns metros da montra obscena do talho, e retomar o chorinco que arrastava há meses e que foi perder-se nos brilhos intermitentes da estrela pendurada à entrada do lote 5, em frente.
A dona da retrosaria, que tinha ido aos bifes e em certas noites fantasiava com o talhante, meneou a cabeça com desprezo e arriscou, num passo de sedução porta do talho adentro:
“Tsst. Está assim desde que deu em vegetariano…”.
“Em vegetariano? Nada disso, não senhora, eu conheço a história”, contrariou o dono das carnes. E entre duas cutiladas disparou uma rajada: “Na véspera do S. Pedro a mulher voou daquele charco de tédio que era a vida lá de casa, isso é que foi. Queixava-se de que o que mais gostava nele era o que ele menos gostava em si, e que estava farta de mal-enjorcados. Punham-se à janela virados cada um para sua rua. Apartheid conjugal, já ouviu falar? Durante uns tempos o homem aguentou-se, resistiu à solidão, mas sucumbiu ao abandono, que é pior. Ainda deixou abertas algumas portas, por onde ninguém quis entrar. E depois, sabe a senhora, há momentos em que todas as rejeições sofridas na vida se abatem sobre nós, com o peso de uma coluna de água da altura deste prédio…”
A da retrosaria estranhou o elaborado da linguagem no meio da crueza do negócio, e ficou com a sensação de que não tinha apanhado tudo. Limitou-se no entanto a pisca-piscar os olhinhos:
“O senhor é tão humano, senhor Joaquim, não lhe conhecia esses sentimentos…”. Mas à socapa, por entre dois perus pendurados e uma gambiarra de luzinhas-bago-de-arroz, deitou ao canto poluente um relance de nojo que atravessou a montra do talho: “É um espectáculo desagradável à vista, este Chico Miserento, todo de castanho, todo cor dos miseráveis…”.
O talhante estendeu-lhe o saco de plástico com as fatias em sangue:
“Não contem comigo para o despejarem da praceta, aviso já. Acha que eu, ganhando a vida com bichos mortos, me vou incomodar com o cheiro do Chico? Sabe o que ele me disse ontem? Que naquele cantinho sonha com mesinhas-de-cabeceira azuis, a boiarem ao som do tilintar dos talheres dos jantares que as pessoas fazem ao relento de Agosto. O que é que um gajo responde a isto?... Não, não sou eu quem o vai contrariar.” Entre pedaços de gordura e músculo que transbordam da picadora, também ele, o talhante, se perde no brilho macilento esmagado pelo movimento espiralado da máquina: “Há que ter respeito por alguém que se sentou nas traseiras da vida e aí ficou, minha senhora.”
“Pois, tá bem, senhor Joaquim! Estou de saída, Boas Festas."

5 Comments:

Blogger JCA said...

Quando a ficção se confunde com a realidade, ou vice-verça.

Excelente trabalho cara Cristina.

Nota:Curioso escrevi um conto de Natal no ano passado que era mais ou menos assim.

:):)

6:20 da tarde  
Blogger Cristina Leimart said...

Caro ergela
Respondi a este comentário há dias, mas por qualquer razão não ficou registado.
Espero que também tenha dado a sua história a ler a alguém.
Obrigada
CL

10:14 da manhã  
Blogger JCA said...

Cara Cristina,por acaso não,se algum dia tiver essa pachorra.

;)Cumprimentos.

6:13 da tarde  
Blogger Manuel Nunes said...

Cara Cristina:

As fantasias da senhora da retrosaria dariam matéria para um bom um naco de prosa. Gostei dessa ideia e também da imagem das carnes obscenas, que poderiam levar a historieta de Natal por caminhos menos próprios para a quadra que atravessamos. Felizmente que o talhante saiu personagem limpa, respeitadora de princípios e valores… Quanto ao apartheid conjugal, tal como é apresentado, é mesmo o pior que pode acontecer a um chefe (!) de família ( o diabo seja cego, mudo e surdo!). Texto interessante, de boa escrita. Ficamos à espera de mais.

Aquele abraço,

Manuel

7:19 da tarde  
Blogger Cristina Leimart said...

Caro d.e.

Pois tem razão: certas "cruezas" e "quenturas" de que aqui falo dariam muito pano para mangas. E às vezes dão. Mas aqui no Prazeres tentamos só apresentar umas manguinhas curtinhas, para não estafar demasiado os leitores.
Obrigada por, mais uma vez, comentar.
CL

5:43 da tarde  

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