21.9.06

Também fiz a minha guerra

_ Tínhamos um jacarandá no jardim, e uma cobra-capelo que se aninhava por ali, junto ao tronco... Foi há tanto tempo. Disse aquilo num murmúrio quase inaudível, parecia falar consigo própria, como se eu não estivesse ali.
Dora tinha os olhos semicerrados, focados na distância, muito para além da pequena sala frugalmente mobilada, e ficou assim um longo momento. Silenciosa, muito quieta, a lembrar, talvez, correrias de crianças, a relva encharcada depois das chuvas, o cheiro intenso da terra, a cor viva das flores do jacarandá, as gargalhadas de um tempo feliz em que tudo parecia tão fácil.
_ Parecia tudo tão fácil, disse ela com um suspiro fundo, uma ruga a cavar-lhe a testa. Depois soltou a torrente das recordações, a voz suave, como se afagasse as palavras.
A poucos dias de tudo se desmoronar... Havia as árvores alinhadas ao longo da estrada, o calor logo pela manhã, a empapar a roupa leve, o eterno cheiro do caril que se escapava das cozinhas e ficava a pairar nas ruas, misturado com mil outros aromas de frutas exóticas e flores carnudas. Manga doce e papaia, abolins vermelhas, entrançadas em grinaldas. A miudagem a trepar às palmeiras, a chapinhar nas poças lamacentas, correndo atrás dos gatos que se escapavam num alarido para dentro das casas e dos jardins. E o som etéreo das cítaras nas casas de chá, ao fim da tarde.
_ Também fiz a minha guerra. Houve um momento de hesitação na voz de Dora. Olhei-a com atenção. Nessa altura ainda não conhecia, como agora, os seus modos lentos, o brilho intenso do olhar na face escura. Esperei.
Ela concentrou-se por um momento na chávena que segurava nas mãos, depois levou-a ao lábios e bebeu um gole do chá perfumado de Ceilão que acabara de fazer. Hábito de outra vida, de outras paragens.
Bebi também, e como às vezes sucede quando o tempo se suspende antes de uma revelação, detive-me a estudar um detalhe sem importância na porcelana delicada, um traço vermelho meio sumido, a lembrar uma serpente retorcida.
_ Nunca vimos a cobra, mas o jardim era dela, protegia a casa. Nesse tempo, todas os jardins tinham uma, para dar sorte. Dora a recordar. Um dia, o encantador veio conversar com ela, usava um turbante vermelho, continuou no seu tom suave, a memória a materializar-se em sombras pela sala. Ou seria a tarde a avançar sobre os prédios, lá fora?
_ Só ele podia falar com as serpentes, tinha as marcas secretas nos pulsos, e conhecia a sua língua de assobios. A cobra respondia-lhe do seu esconderijo com os mesmos silvos, mas não quis mostrar-se. “Não a matem, senão a fêmea persegue-vos até à morte”, disse o encantador de serpentes à nossa mãe. Não sabíamos que havia outra, mas faz sentido se pensarmos nisso, reflectia a minha amiga no seu vagar. Hesitou de novo, cerrou os olhos por um momento e então contou tudo como quem alija um peso de muitos anos.
_ Quando o exército deles entrou na cidade e ocupou as casas tivemos que meter à pressa uma roupa na mala. Fugimos de noite, no primeiro avião em que arranjámos lugar. Mas nessa tarde lembrei-me da cobra no jardim, e das palavras do encantador.
Enquanto os pais e os irmãos corriam entre os quartos e a sala, colhendo ao acaso um livro nas estantes, um quadro, uma túnica, Dora desceu sozinha até ao jardim. Tentou assobiar como ouvira fazer ao encantador, mas a serpente permaneceu silenciosa no seu esconderijo. Talvez não percebesse aqueles assobios desajeitados, pensou, mas continuou a chamá-la, até que uma cabecinha escura com dois olhinhos curiosos emergiu na erva, perto das suas pernas.
_ Não pensei em nada. Ergui a machete que tinha levado comigo, e ouvi a lâmina silvar. Foi a única vez que vi a cobra.
Depois, Dora ficou em silêncio e eu percebi que o nosso chá tinha chegado ao fim.

3 Comments:

Blogger Manuel Nunes said...

Gosto. Um belo quadro do paraíso perdido.

10:18 da tarde  
Blogger João Villalobos said...

Excelente, Filomena. Um beijo

12:13 da tarde  
Blogger Filomena Naves said...

Obrigada pelos vossos comentários, que são um grande incentivo.
Volte sempre d.e.
Um beijo João

3:20 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home