7.9.06

Da Lapa a Lulea - 1

- Boa noite fogo! que me vi aflito para encontrar a sua porta!
- Boa noite acredito! É para o Chiado, mas vá por baixo pelas Janelas Verdes, se fizer o favor. Aquelas ruas meio desertas na zona da Estrela a esta hora não me agradam muito.
- Pelas Janelas Verdes, sim senhor... - A anuência sai-lhe em voz firme mas vai-se esgotando quase até ao sussurro, a intenção transposta para os dedos que procuram sintonizar na rádio o “Banda da Amizade”, programa dos anos oitenta ultimamente reposto a horas vadias.
Funga e finta a rede de sentidos únicos que quase obrigam um condutor a seguir por onde não quer. É um jovem a alcançar os vinte, cabelo máquina um, mosca sobre o queixo como há muito se desusa, argolinhas no lábio inferior e numa orelha, feição honesta, vestido de preto faça chuva ou sol. Sábados e domingos, feriados só excepcionalmente, aufere uns euros jeitosos a conduzir o táxi creme do tio, mas ser chofer de praça não está nos seus sonhos. Quer viajar.
Viajar. E quanto mais cedo e para mais longe melhor. Por isso durante o último ano calcorreou o planeta à boleia dos catálogos de paisagens estereotipadas das agências, vasculhou a pente fino destinos internéticos dos mais banais chegados aos mais extravagantes inóspitos, evitando contudo as revistas da especialidade, por aprofundarem demasiado locais tão vulgares como a Madeira ou a cidade de Bordéus. A indecisão entre o cosmopolitismo do norte da Europa e o exotismo da Ásia é ultrapassada após algumas prospecções junto de quem deparou na Europa do norte com uma versão apenas mais gelada e higienizada desta que vamos construindo cá pelo sul. Faz portanto pontaria para o continente dos contrastes das sabedorias. Que coordenadas ao certo logo se verá, mal o pé-de-meia cresça a ponto de lhe inspirar uma decisão.
- Andei aqui perdido que tempos fogo!, não se percebe bem esta numeração. - Torce tudo para a esquerda e eis o Chafariz da Imponência Real, anúncio empedrado da proximidade às Janelas Verdes. A cidade sossegou há horas. Porém no diminuto movimento cabe ainda a coincidência de o táxi creme desembocar na Rua Presidente Arriaga no preciso instante em que também se aproxima o preto e verde-plástico de um companheiro dos fins-de-semana. Cumprimentos de luzes. Lisboa é pequena, sorri o rapaz.
- Sabe lá, tava a ver que tinha que fazer a sua rua toda em marcha-atrás! Por pouco não esborrachava um cãozito que por ali andava, um cor de mel, se calhar até é seu, quer ver?
A senhora alinha umas quantas vértebras, ajustando-se melhor à napa estalada do lugar. É uma posição que lhe abre recordações. Passou a infância, a juventude e parte da idade adulta sentada no banco de trás, altivamente, dali comandando um exército de um só homem, o motorista particular da família que ingratamente desertou, desgravatado e tonto coberto de soberba, no dia 26 de Abril de setenta e quatro. De então para cá, há que alugá-los às meias horas. E, e...!
- Pois, o tempo que eu esperei pelo táxi! Está por demais este país, as últimas décadas têm sido para esquecer. A Lapa já não é o que era, um jardim dentro de Lisboa, cheio de tradição, a abarcar todo o Tejo…
- Ah isto já foi um jardim? - É a segunda vez que o jovem arregala os olhos para o retrovisor.
- Jardim é uma maneira de dizer: todas estas mansões ajardinadas formavam, no seu conjunto, um jardim...
- Ah, tá bem! Isto a esta hora é um pulinho aqui pela 24 de Julho.
A senhora aconchega a gola do casaco. Chinchila, da genuína. Adquirido no estrangeiro antes destas modas dos direitos dos animais se infiltrarem nas cabeças das pessoas e nos noticiários. Traz os fios do cabelo como que de castigo, tenazmente cativos num penteado antigório, todo ripado. Arrepiado na nuca, progride resolutamente daí para cima, tomando a partir das orelhas o formato rígido de uma panela de pressão. De dois litros e meio, não mais.