7.9.06

Da Lapa a Lulea - 2

Quando o táxi abranda face à iminência do vermelho, uma sem-abrigo tardia, de cabelo escorridinho pouco limpo, olha de relance e assusta-se: parece-lhe avistar para lá do vidro um cortiço parado e silencioso petrificado, um enovelado audaz a desafiar a gravidade, mais estranho ainda pelo tom amarelado e baço. Um décimo de segundo dá para captar tudo isto e ainda concluir: À noite vêem-se figuras muita estranhas, caraças! E é verdade, pelo menos o taxista partilha da opinião. Apercebera-se daquela verdadeira armadura capilar emoldurando uma cara magrinha pouco antes do chafariz das Janelas Verdes, e entre uma música e outra, uma fala e outra, espantara-se para o retrovisor: Fogo!, o que é aquilo, um turbante?! Isto à noite vê-se cada um!
- O que ainda conserva um pouco a atmosfera aristocrática e o prestígio do bairro da Lapa são as embaixadas, sabe – continua brandamente a dona do cabelo morto. - Mas também não fazem vizinhança nenhuma, é só por dizer que representam a diplomacia internacional.
- A diplomacia, ah pois… – O jovem roda ligeiramente o botão do volume. O ambiente está fraco no interior do veículo, Há que aguentar a vigília. Irrompe das bandas do tabliê a voz caramelizada da operadora da companhia, solicitando um carro para a Rua da Palma “ao Martim Moniz” e logo, por entre uma sucessão irreal de apitos e estalidos, a repetição de um número: “309! É o 309!”.
- Há chalés de família ocupados por associações duvidosas, faltam crianças a brincar, não se consegue um táxi a tempo... - Espirra duas vezes encadeadas, a senhora, efeito do fresco da noite aspirado pela janela do condutor. – Enfim, olhe, há quem esteja muito pior que nós.
Do banco da frente sai um aceno por cerimónia, mas primeiro “Santinha!”. O condutor já fareja uma espécie de antecâmara de sessão de desabafos. Não está para aí virado e dá outro toquezinho no botão do rádio, na esperança de criar ali, como quem não quer nada, uma subtil barreira sonora que aparte as duas metades do habitáculo. Mas a cliente tem outros planos. Corre com olhos distantes o largo do Cais do Sodré, a mente solta por extravagantes paragens:
- Olhe a Índia, por exemplo. Na Índia é que é mau: nem táxis há, anda tudo a pé!
Surgem sinais de despertar no lugar do chofer, com a alusão a um país distante, embora este conste da lista dos que o jovem nunca sonhou visitar.
- Tudo a pé, não me diga! Se calhar é só duas rodas, não? E é para quem quer, não?
- Sim, duas rodas e rodas nenhumas. Não têm táxis e não é só isso: as ruas parecem enxames, muita fome, as crianças pelo chão sem roupas, só trapos, há um barulho constante no ar, e depois aquelas multidões no Ganges a tomar banho...
- Ganchos?... – Falta de saber ou só ruído, certo é que o motorista parece agora incomodado inseguro com a rádio e baixa o som. - E tudo ao monte, quer ver? Olhe que não me puxa para lá ir. Mas gostava de entrar no Taj Mahal... – Um fado de inesperados acordes orientais insinua-se devagarinho, mas ele cala de vez o aparelho. - Aquilo dizem que é lindíssimo e tem uma história: era um homem que o construiu para um grande amor e...
- Sim, sim, toda a gente sabe a história do Taj Mahal. – A passageira corta implacavelmente a direito. - E o pior é que não têm casas de banho…
- Onde, no palácio?!
- Não!, por toda a Índia…
- Ai não? Tchi! Aquilo é tudo um país muito pobre...