Da Lapa a Lulea - 3 (final)
Àquela hora já os camiões do saneamento percorrem Lisboa. O táxi depara com um a impedir-lhe a faixa da direita, e a senhora mira em trejeito de repulsa o movimento basculante dos contentores sob o alaranjado da iluminação pública. Por segundos o cirandar resignado das fardas verdes junto à calçada parece-lhe menos agoniante.
- Muito pobre! Não têm casas de banho, mas muitos têm um balde num canto com um púcaro ao lado. Nem papel.
O jovem contrai-se, incomodado. Não imagina as suas viagens povoadas de realidades destas. Quando conta o dinheiro em caixa às duas da madrugada dos domingos, o que antevê são museus com as obras de arte ilustradas nos livros de História do terceiro ciclo, monumentos como os castelos do Loire e outros revelando-lhe paisagens mais bonitas que as do Minho, bares e pubs à noite a pulular de cabelos louros e ruivos e, quando está mais prosaico, grandes superfícies só com DVDs, MP3 e material electrónico. Megacenas como não há cá.
E a passageira prossegue, empenhada na sua crónica de costumes:
- Depois à hora da refeição são obrigados a comer com a mão esquerda, consegue imaginar, que a direita está suja do rabo!
- Tchiii, fogo!, com a esquerda?! Com a direita, vá que não vá... Ainda a gente cá se queixa.
A subida pela Rua do Alecrim está no fim, no Chiado o movimento é menos residual que noutras noites da semana. O condutor mima-se o direito de um saltinho instantâneo fora da conversa Luís de Camões nas calmas, sempre na tua, nem ao sábado à noite te descontrais, para logo tornar à cliente, disposta a contas:
- E a senhora a assistir a isso tudo, já viu?
- Eu?! - Um firme tom de superioridade indignação atravessa o lenço fino de ramagens que se desenrola, quase esvoaçando, diante da cara da mulher, e que protegerá do ar da noite o elmo amarelo. A surpresa leva o jovem a encará-la, mas regressa de imediato à transparência do pára-brisas. Colecta o troco ao som do esclarecimento: - Eu não, que nunca lá fui e é daqueles sítios aonde nunca hei-de ir! Conta-me a minha filha, o marido é lá diplomata de topo e os meus netos têm professores só para eles. Têm uma vida que eu queria que visse! Vão mais ao cinema que nós, vivem numa casa com empregados à europeia e com nove casas de banho.
- Tchi, nove?! Pessoas importantes...
- Importantes e não é só isso: lembre-se que aquilo é um país muito rico! - Faz um gesto de elegante recusa perante as moedas que ele lhe estende, e um sorriso cansado. - Boa noite e obrigada.
Não estivesse a sem-abrigo já recolhida no quentinho, enriquecido a gases de escape, da estação de metro dos Restauradores e casualmente por ali passasse naquele momento, veria uma perna franzina de pele desidratada, vestida a meia de vidro, pendendo do carro e pronta a poisar o sapato de meio salto no lancil do passeio junto à Igreja do Loreto.
Tivesse a sem-abrigo o dom de escutar os pensamentos dos outros, não apenas as suas recusas, e aperceber-se-ia talvez disto: o jovem interpelando os seus botões pretos Mas qual é a ideia do lenço?!, relutante em acreditar que qualquer sopro de vento pudesse alguma vez abalar a integridade daquele penteado erguido de certeza à custa de muitas pulverizações; seguido de Às tantas aquilo na Índia ainda vale uma viagem até lá, se tem cinemas e tudo; e por fim, já fora do carro, o repentino mudar de rumo da atenção da senhora directamente para a tarefa que a espera: Isto de me dispor a ajudar a turma do meu sobrinho na organização da viagem à Escandinávia, ao sábado à noite, só eu! Estava o trabalho facilitado se não os tenho convencido a desistirem da Índia.
- Muito pobre! Não têm casas de banho, mas muitos têm um balde num canto com um púcaro ao lado. Nem papel.
O jovem contrai-se, incomodado. Não imagina as suas viagens povoadas de realidades destas. Quando conta o dinheiro em caixa às duas da madrugada dos domingos, o que antevê são museus com as obras de arte ilustradas nos livros de História do terceiro ciclo, monumentos como os castelos do Loire e outros revelando-lhe paisagens mais bonitas que as do Minho, bares e pubs à noite a pulular de cabelos louros e ruivos e, quando está mais prosaico, grandes superfícies só com DVDs, MP3 e material electrónico. Megacenas como não há cá.
E a passageira prossegue, empenhada na sua crónica de costumes:
- Depois à hora da refeição são obrigados a comer com a mão esquerda, consegue imaginar, que a direita está suja do rabo!
- Tchiii, fogo!, com a esquerda?! Com a direita, vá que não vá... Ainda a gente cá se queixa.
A subida pela Rua do Alecrim está no fim, no Chiado o movimento é menos residual que noutras noites da semana. O condutor mima-se o direito de um saltinho instantâneo fora da conversa Luís de Camões nas calmas, sempre na tua, nem ao sábado à noite te descontrais, para logo tornar à cliente, disposta a contas:
- E a senhora a assistir a isso tudo, já viu?
- Eu?! - Um firme tom de superioridade indignação atravessa o lenço fino de ramagens que se desenrola, quase esvoaçando, diante da cara da mulher, e que protegerá do ar da noite o elmo amarelo. A surpresa leva o jovem a encará-la, mas regressa de imediato à transparência do pára-brisas. Colecta o troco ao som do esclarecimento: - Eu não, que nunca lá fui e é daqueles sítios aonde nunca hei-de ir! Conta-me a minha filha, o marido é lá diplomata de topo e os meus netos têm professores só para eles. Têm uma vida que eu queria que visse! Vão mais ao cinema que nós, vivem numa casa com empregados à europeia e com nove casas de banho.
- Tchi, nove?! Pessoas importantes...
- Importantes e não é só isso: lembre-se que aquilo é um país muito rico! - Faz um gesto de elegante recusa perante as moedas que ele lhe estende, e um sorriso cansado. - Boa noite e obrigada.
Não estivesse a sem-abrigo já recolhida no quentinho, enriquecido a gases de escape, da estação de metro dos Restauradores e casualmente por ali passasse naquele momento, veria uma perna franzina de pele desidratada, vestida a meia de vidro, pendendo do carro e pronta a poisar o sapato de meio salto no lancil do passeio junto à Igreja do Loreto.
Tivesse a sem-abrigo o dom de escutar os pensamentos dos outros, não apenas as suas recusas, e aperceber-se-ia talvez disto: o jovem interpelando os seus botões pretos Mas qual é a ideia do lenço?!, relutante em acreditar que qualquer sopro de vento pudesse alguma vez abalar a integridade daquele penteado erguido de certeza à custa de muitas pulverizações; seguido de Às tantas aquilo na Índia ainda vale uma viagem até lá, se tem cinemas e tudo; e por fim, já fora do carro, o repentino mudar de rumo da atenção da senhora directamente para a tarefa que a espera: Isto de me dispor a ajudar a turma do meu sobrinho na organização da viagem à Escandinávia, ao sábado à noite, só eu! Estava o trabalho facilitado se não os tenho convencido a desistirem da Índia.
Olá Cristina,
Diverti-me a ler os teus txts. As personagens estão mt bem caracterizadas, e as ambiências são verosímeis. Parece que tou a ver a senhora da Lapa, com o seu Chanel, lenço de seda, sapatinho clássico de salto quadrado e ...a tal armação na cabeça, colada a laca, tipo Maria Antonieta requentada.
Ah, tás a ver o estilo, não é?
Assisti mesmo a esta cena, ou melhor, ao seu esqueleto. Depois foi só "montá-la" inventar e o que lá não vi.
Obrigada pelo comentário.
CL