A cor das lágrimas
Não lhe consegui ver a cor das lágrimas. Quando digo cor, digo o que lá vai dentro, dissolvido com os sais e outros químicos que o cérebro da pessoa fabrica no meio do desgosto. Digo o que as impulsiona, as lágrimas, e depois é arrastado com elas. Não lhe vi a cor.
No primeiro dia triturava palavras tão doentes como os actos de que se arrependia e devolvia-me sílabas enrodilhadas em lágrimas e saliva e desespero. Dessa vez nem pensei em cores, quais cores, chorei eu também à vista de tanto sofrimento descolorido.
Mais tarde chorou-me ao telefone, à janela do carro, chorou à porta de casa e no maple pequeno da sala, com a luz do candeeiro de pé
(o do braço articulado e sininhos de barro pendurados)
a iluminar-lhe os soluços. E eu ouvindo, sabendo que ajudar era deixá-las correr, as lágrimas
(o reflexo da lâmpada deslizando-lhe cara abaixo à boleia das mais grossinhas)
até que por fim desse uma fungadela de coragem e fosse à sua vida mais leve.
Nos muitos dias que durou aquele choro, eu não resisti a tentar adivinhar-lhe a cor das lágrimas, pois enquanto me demorasse nessa pesquisa cromática, aliviava-me da carga daquela dor tão entornada sobre mim.
No primeiro dia, o remorso foi-lhe expulsando pelo nariz um resumo dorido e amassado de um período em que a tinha tratado mal, muito mal, fungava, em que a sonegara ao resto do mundo privando-a da liberdade de ser. Tudo por medo, tremechorava, tudo infestado pelo medo de perder um amor grande como nunca, uma pessoa tão querível.
Foi no mesmo dia em que o meu espanto
“Que homem é esse dentro de ti que eu não conheci?”
animou um estranho ciclo da água e as lágrimas que desciam voltaram para trás, volveram a montante, realimentaram a fonte para daí, de novo, se desprenderem numa enxurrada de desânimo.
Passados dias entrou de óculos inconsolados, magro, ombros mais desnivelados do que o costume
(era evidente que a escoliose também chorava o abandono pela mulher).
Desesperava por uma palavra, insulto que fosse, que um mês inteiro não trouxera ainda. E chorava baixinho:
Pouco tempo após a festa de casamento dos sonhos de cada um, ela começara a espaçar as idas ao cabeleireiro e descurava argumentos na barra do tribunal, desleixo que confundira amigos, colegas e familiares. Porque já dentro do casamento de sonho, ele dera em aspirar-lhe o dia-a-dia aos bocadinhos, para dentro de si. Isto mo confessou logo no primeiro telefonema, o das lágrimas sem cor e do medo por amor, e num ou noutro dos monólogos que se seguiram nos meses que também se seguiram, expurgando assim primeiro o remorso, depois a raiva, e o remorso outra e outra vez.
Até que certa noite ela o apanhou a trabalhar longe. Esvaída de sonhos e de forças, convocou o apoio incondicional da madrinha de casamento e deitou mãos à obra: num passe rápido, desandou de casa com roupas, loiças, cortinados, o sofá pago por si, uma arca antiga e o tapete dos pés da cama encomendado por medida. Abdicou de uns talheres relíquia, abandonou as chaves numa tacinha do hall e calou para sempre o telemóvel.
Nessa noite encerraram-se os contactos entre as duas famílias, por decisão unilateral irrevogável, para estupefacção e tristeza de metade dos interessados.
Ela entrincheirou-se na casa de infância, onde de imediato se ergueu à sua volta, obra de um regimento comandado pela profissional madrinha de separação
(talhada para ganhar a vida gerindo friamente divórcios alheios)
uma fortaleza de surdez e de silêncio, de reclusão medieval.
(Trinta e tal anos, século XXI, Lisboa, uma mulher ainda veste o papel de vítima impotente para mostrar a um homem que a via da possessão desemboca sempre num beco de má saída).
O que ele chorou mais tarde na casa sem cortinados, acolhido numa espiritualidade inventada à pressa, revisitando os erros cometidos naquele passado tão curto, erros de todos os dias, pequenos egoísmos, falhas maiores. O que ele implorou para romper aquela ausência tão absoluta, que tornava a luta tão desigual e desumana; o que suou para expulsar o mercúrio líquido da dor que lhe enchia as veias.
Mas o sonho maltratado de duas vidas tinha o destino habilmente traçado: desmoronou-se de vez assim, sem direito de apelo, e foi depois mantido por terra, tenazmente, com muitos pés sobre o pescoço agonizante, impedindo-o de ressuscitar.
Tudo sem uma palavra. Trabalho limpo de profissional.
Com o tempo, ele acabou por nivelar os ombros e seguir:
“Esta nódoa que se me colou à alma, esfregando sairá?”
Ela voltou à vida meses depois e recomeçou a advogar as sortes dos outros. Entre os dois ficaria um vazio, não fosse a madrinha, prestável, fraternal, ocupá-lo desinteressadamente: aspirando o dia-a-dia dela, aos bocadinhos, para dentro de si.
Quanto à cor das lágrimas, pois bem, hesito em confessar, mas digo-vos que com isto tudo me perdi, e não sei como me desenvencilhar da coisa das cores com que comecei o texto
(porque a sonhei)
mas com que não o consigo acabar…
No primeiro dia triturava palavras tão doentes como os actos de que se arrependia e devolvia-me sílabas enrodilhadas em lágrimas e saliva e desespero. Dessa vez nem pensei em cores, quais cores, chorei eu também à vista de tanto sofrimento descolorido.
Mais tarde chorou-me ao telefone, à janela do carro, chorou à porta de casa e no maple pequeno da sala, com a luz do candeeiro de pé
(o do braço articulado e sininhos de barro pendurados)
a iluminar-lhe os soluços. E eu ouvindo, sabendo que ajudar era deixá-las correr, as lágrimas
(o reflexo da lâmpada deslizando-lhe cara abaixo à boleia das mais grossinhas)
até que por fim desse uma fungadela de coragem e fosse à sua vida mais leve.
Nos muitos dias que durou aquele choro, eu não resisti a tentar adivinhar-lhe a cor das lágrimas, pois enquanto me demorasse nessa pesquisa cromática, aliviava-me da carga daquela dor tão entornada sobre mim.
No primeiro dia, o remorso foi-lhe expulsando pelo nariz um resumo dorido e amassado de um período em que a tinha tratado mal, muito mal, fungava, em que a sonegara ao resto do mundo privando-a da liberdade de ser. Tudo por medo, tremechorava, tudo infestado pelo medo de perder um amor grande como nunca, uma pessoa tão querível.
Foi no mesmo dia em que o meu espanto
“Que homem é esse dentro de ti que eu não conheci?”
animou um estranho ciclo da água e as lágrimas que desciam voltaram para trás, volveram a montante, realimentaram a fonte para daí, de novo, se desprenderem numa enxurrada de desânimo.
Passados dias entrou de óculos inconsolados, magro, ombros mais desnivelados do que o costume
(era evidente que a escoliose também chorava o abandono pela mulher).
Desesperava por uma palavra, insulto que fosse, que um mês inteiro não trouxera ainda. E chorava baixinho:
Pouco tempo após a festa de casamento dos sonhos de cada um, ela começara a espaçar as idas ao cabeleireiro e descurava argumentos na barra do tribunal, desleixo que confundira amigos, colegas e familiares. Porque já dentro do casamento de sonho, ele dera em aspirar-lhe o dia-a-dia aos bocadinhos, para dentro de si. Isto mo confessou logo no primeiro telefonema, o das lágrimas sem cor e do medo por amor, e num ou noutro dos monólogos que se seguiram nos meses que também se seguiram, expurgando assim primeiro o remorso, depois a raiva, e o remorso outra e outra vez.
Até que certa noite ela o apanhou a trabalhar longe. Esvaída de sonhos e de forças, convocou o apoio incondicional da madrinha de casamento e deitou mãos à obra: num passe rápido, desandou de casa com roupas, loiças, cortinados, o sofá pago por si, uma arca antiga e o tapete dos pés da cama encomendado por medida. Abdicou de uns talheres relíquia, abandonou as chaves numa tacinha do hall e calou para sempre o telemóvel.
Nessa noite encerraram-se os contactos entre as duas famílias, por decisão unilateral irrevogável, para estupefacção e tristeza de metade dos interessados.
Ela entrincheirou-se na casa de infância, onde de imediato se ergueu à sua volta, obra de um regimento comandado pela profissional madrinha de separação
(talhada para ganhar a vida gerindo friamente divórcios alheios)
uma fortaleza de surdez e de silêncio, de reclusão medieval.
(Trinta e tal anos, século XXI, Lisboa, uma mulher ainda veste o papel de vítima impotente para mostrar a um homem que a via da possessão desemboca sempre num beco de má saída).
O que ele chorou mais tarde na casa sem cortinados, acolhido numa espiritualidade inventada à pressa, revisitando os erros cometidos naquele passado tão curto, erros de todos os dias, pequenos egoísmos, falhas maiores. O que ele implorou para romper aquela ausência tão absoluta, que tornava a luta tão desigual e desumana; o que suou para expulsar o mercúrio líquido da dor que lhe enchia as veias.
Mas o sonho maltratado de duas vidas tinha o destino habilmente traçado: desmoronou-se de vez assim, sem direito de apelo, e foi depois mantido por terra, tenazmente, com muitos pés sobre o pescoço agonizante, impedindo-o de ressuscitar.
Tudo sem uma palavra. Trabalho limpo de profissional.
Com o tempo, ele acabou por nivelar os ombros e seguir:
“Esta nódoa que se me colou à alma, esfregando sairá?”
Ela voltou à vida meses depois e recomeçou a advogar as sortes dos outros. Entre os dois ficaria um vazio, não fosse a madrinha, prestável, fraternal, ocupá-lo desinteressadamente: aspirando o dia-a-dia dela, aos bocadinhos, para dentro de si.
Quanto à cor das lágrimas, pois bem, hesito em confessar, mas digo-vos que com isto tudo me perdi, e não sei como me desenvencilhar da coisa das cores com que comecei o texto
(porque a sonhei)
mas com que não o consigo acabar…