6.5.07

Territórios de Caça (VIII)


8. A luz cinzenta entrava pelas duas largas janelas da minha sala de trabalho e quarto de dormir. Tentava reflectir, sentado na minha mesa, em frente à máquina de escrever, (pensava em Sara, no que acontecera nos últimos dias, na questão do dinheiro e no conto que iam publicar), mas algo interferia na ordem dos meus pensamentos. Alguns barulhos são como inofensivas cócegas, mas podem crescer, até se tornarem incómodos. Não posso dizer quando comecei a aperceber-me, no silêncio habitual da casa, do ruído de fundo produzido por uma discussão entre várias pessoas. A algazarra deve ter durado algum tempo e, às tantas, parecia-me um estardalhaço intolerável.
Decidi parar o meu trabalho e procurar a fonte da perturbação. O som era mais forte na cozinha, ou seja, vinha das traseiras do prédio. Abri a porta de casa e procurei os desordeiros. Entretanto, ouvia-se outra voz, de uma criança ou de uma mulher.
Só então compreendi o que se passava. No andar de cima, estavam três pessoas a gritar: um deles era Fárkas, que curiosamente parecia o mais tranquilo; a seu lado, uma mulher jovem (o que notei imediatamente foram os jeans apertados, que lhe desenhavam formas redondas e esbeltas); a terceira figura era um homem magro, de cabelo curto, vestido de gabardina cor de areia.
"Não pode ser, estás proibido!", insistia o homem pequeno, enquanto a rapariga, de braços entrelaçados, num gesto de desafio, lhe gritava: "Você é que não pode ser!".
E o da gabardina atacava: "Nem penses que levas a tua avante!".
Subi ao andar de cima, para tentar parar aquele tumulto patético.
E, então, aconteceu algo de estranho: quando cheguei ao patamar de cima, entrava na varanda colectiva, aproximava-me daquele estranho grupo, o homem baixo cresceu para Fárkas e agarrou-o pelos colarinhos da camisa; estava tão irritado, que parecia capaz de agredir o meu vizinho, apesar da idade deste e de ele estar em convalescença. A atitude era inaceitável, até porque a varanda corria a grande altura e o corrimão não era assim tão forte. Poderia ter havido um acidente!
Por isso, corri para ajudar o velho; a rapariga lançara um grito histérico e batia com a mão aberta na cabeça do agressor: "Tira as manápulas, meu idiota!", gritava ela, mas num guincho muito agudo, que mostrava extremo nervosismo.
A cena foi rápida. Agarrei o homem por trás e obriguei-o a largar Fárkas. Ao ver-me, ele pareceu surpreendido: "Você?", soprou, a olhar para mim, os olhos injectados de ódio, com um misto de raiva e recuperação de certa compostura, talvez por compreender finalmente que se tinha excedido. Mas dissera aquilo como se soubesse quem eu era.
O incidente acabou naquele momento. Olhei melhor para o desconhecido: era baixo, parecia-se estranhamente com Charles Aznavour: era um autêntico sósia do cantor francês. A rapariga segurava o velho: "O bruto não o magoou, tio, pois não?", perguntava ela, aflita.
"Depois falamos melhor sobre isto", disse Charles Aznavour, numa evidente ameaça, que parecia dirigir a Fárkas, mas talvez também a mim.
"Haverá outras oportunidades, meu caro Petrudján, a vida é longa.", respondeu Fárkas, muito digno, apesar da camisa amarrotada.
E o tal Petrudján deslizou para a saída, com a gabardina a esvoaçar.
"O que queria este tipo, István?" perguntei.
Houve uma pequena, ligeiríssima, hesitação na resposta:
"O Petrudján emprestou-me dinheiro e, agora, quer cobrar. A palavra de um homem já não conta nada, nos dias que correm! Combinámos que o dia do pagamento era só no final do mês. É nesse dia que eu pago e nem um dia antes! Ainda há princípios!"
Soara a improvisação brilhante, mas a explicação da dívida não jogava com as frases que eu ouvira.
Fárkas sorria, apesar de tudo. Estava recomposto, mas com ar preocupado e cansado.
"Estou velho para estas discussões", disse ele.
Dito isto, despediu-se de nós:
"Vocês são jovens! Eu estou velho! Falamos depois", explicou.
Fárkas entrou em casa e fechou a porta, devagar. E eu fiquei no patamar, na companhia daquela mulher desconhecida. A tarde estava cinzenta e melancólica; um vento fresco trouxera um derradeiro protesto de início de primavera. Percebi que não tinha casaco e voltei para casa, com uma vaga saudação à rapariga.

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3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

:-) quero mais, rapido, fiquei viciada...maria joão
mulheresforadehoras

9:10 da manhã  
Blogger Luis Naves said...

obrigado, maria joão. tentarei acelerar

10:42 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Obrigada Luis Naves! Da-me letras, palavras, ideias, pontos e virgulas, rapido...rapido se não fico com sindroma de abstinência! :-)
maria joão

10:46 da manhã  

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