Amar Amarelinho
Dália, sua bera
Quase toda a gente associa o Domingo a uma gaiola com um canário. Há até uma cantiga do Paco Bandeira, há crónicas de bons escritores sobre casais de marido e mulher e suas chilreadas manhãs de domingo. Não é o meu caso, não faço essas associações. No meu caso havia uma piriquita, mas gaiola nunca, apesar de a princípio me esboroares o tino com uma zarzuela maldosa cujo refrão me comandava a enclausurar a Pilorinha.
Também não havia domingos. Aliás domingos havia, mas a minha relação com a piriquita era diária, horária. “Minutária, secundária!”, grasnavas. Secundária é que ela não era: vivíamos um para o outro.
Lembro-me de uma vez essa voz ríspida, nunca amaciada pelo calor líquido de Moçambique: Que não sonhasse em cair acamado! Que me calçavas imediatamente os rolamentos, directo a um daqueles alguidares bafientos onde nos põem de molho até ao consumo final. Percebi nesse pré-aviso de despejo que o meu lugar era o mundo dos outros e quis chorar. Mas depressa caí em mim e sem adiamentos fingi cair à cama. Sala de espera por sala de espera, livrava-me já do veneno feminino que saturava as nossas duas assoalhadas.
Ao segundo dia no Cantinho dos Avós, a piriquita esvoaçou-me para a mão. Era uma inesperada nuvem amarela, de uma bondade vaporosa. Fiquei maravilhado. Ela deve ter-me sentido a alma silvestre de África, entranhada desde o primeiro dia em que lá poisei, pois nunca mais rondou outra pessoa. No lar deixaram. As assistentes de bata azul deslizavam mecanicamente, atravessando sem pressa e sem tempo o dia, os corredores e as salas, e a maioria dos velhotes ignorava os voos rasantes ao nariz que a Pilorinha fazia divertida, preferindo focar o passado no empedrado da lareira ou nos amplos espaços interiores cavados pelos tranquilizantes.
Retomei o hábito austral de divagar sobre o espírito dos insectos. Expunha-lhe a felicidade laboriosa de formigas e escaravelhos enquanto ela me picava sobrancelhas e pestanas. Falei-lhe daquele amigo escultor no Canadá: descobriu três borrachitos no atelier; teve medo de ferir a ninhada seguinte; esculpiu três ovos em gesso no canto preferido dos pombos; desencorajou-os, assim, de voltarem; viveu em paz com a consciência o resto do ano. A bicha compreendeu e piou.
Meses antes tentara contar-te a história. Paraste, um pé dentro, o outro fora e a expressão azeda pendurada a meio do tapete da entrada: “Quê? Esse não é o que desandou e deixou cá quatro filhos?... Eu vou à porteira!”. Estive para te esganar o gato, infeliz em quem eu me vingava em pensamento quando me arrependia da escolha que fiz para casar. Vê bem o desamor que me dedicavas, capaz de suplantar o meu amor à bicharada. Como o gato não tinha culpa, optei por sacar os papéis e os plásticos do nosso ecoponto doméstico e encafuar tudo no lixo orgânico. Atentado caseiro ao ambiente. Bem feito para o mundo onde me cruzei contigo e onde nunca achei coragem para te calçar uns patins todo-o-terreno e mandar-te também às urtigas.
Uma vez estava a urinar e nem preciso de dizer onde o meu amor amarelinho se empoleirou. Uma sacudidela distraída atirou-a de mergulho. Tive de lhe dar banho, secá-la com o secador de cabelo e justificar-me pelo atraso ao jantar, que no lar era às seis e tornava as noites tão folgadas como dias de Verão.
Ela vivia mais em liberdade que eu. Debicava alpista, miolo de pão e a própria imagem num comedourozinho com espelho que coloquei no aparador da sala de convívio. À hora da visita brincava entre mesas e cadeiras, aproximava-se pela carpete (Tu: “Tu és surdo! Como é que lhe ouves o tic-tic das patas?!), saltava para o chinelo e escalava-me até se empoleirar nas hastes dos óculos. Metia-se por dentro, espreitava através das lentes. Grande luzinha companheira!
Acabámos ambos por morrer: primeiro ela, eu logo depois. A tempo de escaparmos à humanidade afogada na poluição dos derivados do petróleo, creio.
Hoje somos mais felizes que nunca. Agora o piriquito sou eu. Adaptei-me bem à função. Sou eu quem esvoaça e olha através das lentes dela. É ela quem me conta histórias que reconheço dos ecos das savanas e matos, de quando os atravessava semanas a fio à cata de insectos raros para pintar a guache e tinta-da-China.
Não imaginas o gozo que me dá saber-te cheia de artroses, saber que ontem saudaste o porteiro, “Bênção, senhor cardeal”, e que nem perceberás como esta carta é apenas o subconsciente às cotoveladas à consciência. Um sonho. Um sonho e não a expressão de alguém que do Além se lembrou de ti.
Quase toda a gente associa o Domingo a uma gaiola com um canário. Há até uma cantiga do Paco Bandeira, há crónicas de bons escritores sobre casais de marido e mulher e suas chilreadas manhãs de domingo. Não é o meu caso, não faço essas associações. No meu caso havia uma piriquita, mas gaiola nunca, apesar de a princípio me esboroares o tino com uma zarzuela maldosa cujo refrão me comandava a enclausurar a Pilorinha.
Também não havia domingos. Aliás domingos havia, mas a minha relação com a piriquita era diária, horária. “Minutária, secundária!”, grasnavas. Secundária é que ela não era: vivíamos um para o outro.
Lembro-me de uma vez essa voz ríspida, nunca amaciada pelo calor líquido de Moçambique: Que não sonhasse em cair acamado! Que me calçavas imediatamente os rolamentos, directo a um daqueles alguidares bafientos onde nos põem de molho até ao consumo final. Percebi nesse pré-aviso de despejo que o meu lugar era o mundo dos outros e quis chorar. Mas depressa caí em mim e sem adiamentos fingi cair à cama. Sala de espera por sala de espera, livrava-me já do veneno feminino que saturava as nossas duas assoalhadas.
Ao segundo dia no Cantinho dos Avós, a piriquita esvoaçou-me para a mão. Era uma inesperada nuvem amarela, de uma bondade vaporosa. Fiquei maravilhado. Ela deve ter-me sentido a alma silvestre de África, entranhada desde o primeiro dia em que lá poisei, pois nunca mais rondou outra pessoa. No lar deixaram. As assistentes de bata azul deslizavam mecanicamente, atravessando sem pressa e sem tempo o dia, os corredores e as salas, e a maioria dos velhotes ignorava os voos rasantes ao nariz que a Pilorinha fazia divertida, preferindo focar o passado no empedrado da lareira ou nos amplos espaços interiores cavados pelos tranquilizantes.
Retomei o hábito austral de divagar sobre o espírito dos insectos. Expunha-lhe a felicidade laboriosa de formigas e escaravelhos enquanto ela me picava sobrancelhas e pestanas. Falei-lhe daquele amigo escultor no Canadá: descobriu três borrachitos no atelier; teve medo de ferir a ninhada seguinte; esculpiu três ovos em gesso no canto preferido dos pombos; desencorajou-os, assim, de voltarem; viveu em paz com a consciência o resto do ano. A bicha compreendeu e piou.
Meses antes tentara contar-te a história. Paraste, um pé dentro, o outro fora e a expressão azeda pendurada a meio do tapete da entrada: “Quê? Esse não é o que desandou e deixou cá quatro filhos?... Eu vou à porteira!”. Estive para te esganar o gato, infeliz em quem eu me vingava em pensamento quando me arrependia da escolha que fiz para casar. Vê bem o desamor que me dedicavas, capaz de suplantar o meu amor à bicharada. Como o gato não tinha culpa, optei por sacar os papéis e os plásticos do nosso ecoponto doméstico e encafuar tudo no lixo orgânico. Atentado caseiro ao ambiente. Bem feito para o mundo onde me cruzei contigo e onde nunca achei coragem para te calçar uns patins todo-o-terreno e mandar-te também às urtigas.
Uma vez estava a urinar e nem preciso de dizer onde o meu amor amarelinho se empoleirou. Uma sacudidela distraída atirou-a de mergulho. Tive de lhe dar banho, secá-la com o secador de cabelo e justificar-me pelo atraso ao jantar, que no lar era às seis e tornava as noites tão folgadas como dias de Verão.
Ela vivia mais em liberdade que eu. Debicava alpista, miolo de pão e a própria imagem num comedourozinho com espelho que coloquei no aparador da sala de convívio. À hora da visita brincava entre mesas e cadeiras, aproximava-se pela carpete (Tu: “Tu és surdo! Como é que lhe ouves o tic-tic das patas?!), saltava para o chinelo e escalava-me até se empoleirar nas hastes dos óculos. Metia-se por dentro, espreitava através das lentes. Grande luzinha companheira!
Acabámos ambos por morrer: primeiro ela, eu logo depois. A tempo de escaparmos à humanidade afogada na poluição dos derivados do petróleo, creio.
Hoje somos mais felizes que nunca. Agora o piriquito sou eu. Adaptei-me bem à função. Sou eu quem esvoaça e olha através das lentes dela. É ela quem me conta histórias que reconheço dos ecos das savanas e matos, de quando os atravessava semanas a fio à cata de insectos raros para pintar a guache e tinta-da-China.
Não imaginas o gozo que me dá saber-te cheia de artroses, saber que ontem saudaste o porteiro, “Bênção, senhor cardeal”, e que nem perceberás como esta carta é apenas o subconsciente às cotoveladas à consciência. Um sonho. Um sonho e não a expressão de alguém que do Além se lembrou de ti.
Bom, Cristina! :)
Obrigada, João.
Cara Cristina,gostava de lhe dizer quanto gostei deste texto,obrigado.
Caro Ergela
Ainda bem que o "tocou". Obrigada pela opinião.