20.10.06

Era uma vez ...

...um tigre de pelo encarnado que gostava de correr na floresta... um panda gigante que via tudo a preto e branco...Era uma vez... A memória das palavras, o ritmo delas, chegava-lhe de longe com uma nitidez surpreendente, tantos anos depois. Ao ritmo dos próprios passos na calçada. Eram sempre animais. Jacinta gostava de animais e inventava histórias para eles. Para ela, que a ouvia em silêncio, embalada na doçura da sua voz. Esquecia-se que não queria dormir, os olhos fechavam-se-lhe sem querer, a pensar nos pandas e nos tigres. No dia seguinte queria saber o resto, conta pedia ela, e Jacinta ria-se, que esperasse, à noite contaria. Era sempre assim.
Joana sorriu à recordação dessa infância iluminada pelas histórias da Jacinta, a ama, que vivia agora no lar de fachada amarelo-torrado, ao fundo da rua, estava mesmo a chegar.
Bateu à porta e esperou. A governanta descia a escada com vagar, a gemer das artroses, abria cheia de cautelas, dava os bons-dias e lançava-se numa ladainha que só parava lá em cima, à porta do quarto de Jacinta.
A dona Jacinta, benza-a deus, na mesma coitadita, lá vai carregando a cruz, veja a menina, é uma santa, sem um queixume, benza-a deus. Repetia aquilo, repetia, escada acima, e Joana refreava a pressa que trazia da rua e seguia-a em silêncio, a fazer que sim com a cabeça. Mas a outra não via, deixava-a à porta do quarto sem um aceno e perdia-se nos corredores da casa, sempre a murmurar. Benza-a deus, coitadita.
Quando ela entrava, Jacinta erguia a cabeça e Joana julgava ver um brilho qualquer iluminar-lhe o rosto por um momento. Mas depois o olhar resvalava-lhe, perdido, para o abat-jour branco do candeeiro, e daí para a imagem da virgem sobre a cómoda, passava pela menina-de-chapéu-de-palha-na-praia do quadro na parede, sem um sinal de reconhecimento, e ia pousar sobre as mãos abandonadas no colo.
Era Joana que falava. Contava as últimas graças do Diogo, já faz tão bem as contas, havias de ver, Jacinta, e o piano da Marta, artista aquela miúda, também gosta de histórias, hás-de contar-lhe aquela das zebras. Perguntava-lhe do apetite e da comida, do sono, à noite. Como te sentes hoje, Jacinta? Calava-se a dar-lhe tempo, como se ela fosse responder, e depois dizia ainda bem, gosto de te ver.
Vinha então a enfermeira, era a hora de medir a tensão e a temperatura. E depois dizia, naquela voz das enfermeiras, que agora são horas de dormir. Então Joana começava a contar, com a voz repousada, era uma vez um leão azul que vivia numa floresta muito longe... E continuava a contar, até que Jacinta adormecia.