1.10.06

História breve de um laranjal

- Tivesses tu tido a mesma eloquência há coisa de quarenta anos, e hoje ainda haveria o laranjal dos avós que tanto te encantava…
- Elo…quê?, mas que é isso de eloquência? Não me assomes com palavras arrebicadas, eu…
F. e A. saem para o bafo do meio-dia satisfeitos com a reunião com a equipa da fábrica de conservas de tomate. Convenceram a empresa a tirar o fito da área de sobreiros junto à estrada nacional, trocando-a por outra com solos de classe C, também pertença da família. Vindos, o segundo ali mesmo da terra e o primeiro do seu escritório de economista em Benfica, confluíam aos setenta e tal anos, finalmente, neste interesse comum: preservar o montado de sobro herdado dos avós.
- Digo eu que usaste das palavras certas para lhes dares a volta, Armindo, é isso que eu digo – esclarece Fernando.
- Tá feito, é o que conta! Tu aplicas lá como entenderes o dinheiro do subsídio ao montado e eu durmo tranquilo. Não te aproveite a ocasião para me passares a mão pelo lombo.
- Ora! Um copo além na esquina, queres?
- Não quero copos nem muita conversa. Quero fugir para debaixo de um chaparro e gozar enquanto cá ando a paz que a gente conquistou aqui hoje.
O mais novo varre com um suspiro o casaredo quente do largo:
- Armindo! Ainda sentido com a história do laranjal? Ao fim de tantos anos? Quanto é que já não correu por baixo das pontes…
- Que tenha corrido. Mágoas não são águas. A minha, olha que ainda me agua a cabeça muitas noites. Isso do tempo, lá em Lisboa é uma coisa e aqui é outra.
- Precisava de dinheiro, tenta compreender. Queria ampliar o escritório, progredir na carreira... Sabes lá o preço de viver em Lisboa…
- Sei o de viver aqui.
F. destranca com o automático as portas do Lancia, desaperta energicamente o nó da gravata de seda e atira-a para o interior. A. limpa com um lenço de algodão grosso o suor do pescoço e remexe com a bota um veio de pó acumulado na berma do passeio.
- … E quando cheguei com a proposta – prossegue F. - tu ficaste a olhar para mim como se eu fosse transparente, mudo, um grande silêncio, não te opuseste à venda da parcela…
- Não me opus?! – Há penumbras de outro tempo sacudindo o sol a pino. - A gente para se opor tem que coicear? Abalas um dia de ano novo com a Maria Antónia e só ouvimos falar de vocês seis anos depois para reclamares o laranjal!
- Um hectare e meio, Armindo, apenas um hectare e meio numa herdade de setenta e nove…
- E quantas sombras, meu cabrão?! – A. expulsa a zanga com cada fio de suor. - Quantas sombras rasas no chão desse hectare, que eu e a Maria Antónia vivemos palmo a palmo antes de ela saber que Lisboa tinha um canto à espera dela?... O laranjal era da família, mas pertencia-me a mim, a mim, o laranjal.
- Irmão, a vida avança…
- Não avances mais tu no assunto.

5 Comments:

Blogger JCA said...

Cara Cristina

Para quando um livro seu? Já começa a ser tempo.

Cumprimentos.

Nota: Grande texto este,muitos parabens.

5:20 da tarde  
Blogger Cristina Leimart said...

Simpático comentário o seu, muito obrigada.
Quanto ao livro, o segundo original vai a dois terços, o primeiro vai começar agora a circular para ver se alguém o quer.

11:28 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

giro o texto

custou a decidir-me a ler..
é grande e nem sempre tenho tempo..
mas gostei..
parece inacabado.., mas gostei

dentro do laranjal(apenas 1,5 ha),
roubaram-lhe a MªAntónia...,
essa sim incomensurável perda, ñ medível em hectares..

11:53 da manhã  
Blogger JCA said...

Cara Cristina


Como seu "admirador" pelas "ondas" da TSF,fico a torcer para que esse livro saía rápido e dê-nos essa noticia aqui, ou noutros fóruns.

Cumprimentos

12:14 da tarde  
Blogger Cristina Leimart said...

Blota,
percebo bem isso do tempo. O que eu suo para os textos ficarem com um tamanhito maneirinho e se lerem bem aqui. Mas ainda bem que chegou ao fim do laranjal...

Ergela,
terei muito gosto em partilhar essa novidade consigo.

Obrigada pelas palavras dos dois.

9:29 da tarde  

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