12.10.06

Para trás, pá, para trás, que te magoas!

O silvo da gaita-de-beiços rompeu o tempo e chegou até mim, acabava de sair do banho, e foi um instante até apanhar o roupão e a ir à janela. Lá estava ele, a silvar outra vez o pequeno instrumento de plástico, amarelo e verde, às ondas, cada onda uma nota, a fazerem eco, a rolarem, brancas, no ar, ainda as ouço. “Ó amolador, afia facas, tesouras, canivetes, arranja chapéus, ó amolador!” – pregava a seguir.
Perto, um miúdo de calções castanhos e camisa amarela, cruzada por uns suspensórios metade de elásticos e outra metade de cabedal, olhava para as faíscas que saltavam da roda abrasiva, braços atrás das costas, quieto, a mexer-se só quando os pequenos lumes o picavam na cara.
“Para trás, pá, para trás, olha que te magoas!” – avisou-o o homem enquanto dava ao pedal, que dava à roda traseira da bicicleta, que dava à rodela que afiava uma faca. Por debaixo do selim, bocados de chapéus-de-chuva atados ao molho, varetas, quantas ferrugentas!
E eu à procura da roupa, onde está ela, e do gravador, onde está ele? Ah! Aqui! Mas, ai, não tem pilhas. NÃO TEM PILHAS! Arranjem-me duas das pequenas! Mas de que tipo, e eu DAS PEQUENAS, muito pequenas! Mas das quais, e eu das AAA, das abaixo das normais, depressa que ele vai-se embora! NÃO HÁ NENHUMAS! O MP3! Tirei as duas do MP3, pu-las no gravador.
O homem ainda lá estava, a soprar outra vez no tempo e a atirar para o ar “ó amolador, afia facas, tesouras, canivetes, arranja chapéus, ó amolador”, mulheres da vizinhança a saírem as portas abraçadas a facas cheias de bocas e chapéus de varetas partidas, e a repetir, outra vez, agora a olhar para cima, para a janela atrás da qual eu estava, para mim, “para trás, pá, para trás, olha que te magoas”, mas eu sem sair dali, hipnotizado pelos vaga-lumes.
Da casa em frente o senhor Amílcar afastou a cortina, chamado de certeza, ele também, pelo pregão, que velho que está, que velho que estou!
Os amoladores apareciam sempre no Outono, quando o tempo começava a acastanhar-se e a cair. Estamos no Outono. Estou no Outono.
A última vez que vi um foi em Lima, vejam lá, em Lima, sim, no Peru, num Outono, também, aí, na rua da Silvia Westphallen, sim, essa, a escultora, que também os ia ver à janela e largava as pedras para ir ter com ele. Lembro-me que me perguntei como é que foram lá parar, eu a pensar que eles eram só daqui!
O miúdo de calção cinzento e camisa amarela, de suspensórios cruzados nas costas, ainda lá está, parte agora atrás do homem, do silvo e do pregão.
Saio a porta, desço a escada a dois e dois, vou junto dele, paro, ligo o gravador, ele sopra na gaita-de-beiços e chama as pessoas, registo o som e o anúncio para o ouvir quando já não houver estações no ano. “Ó amolador, afia facas, tesouras, canivetes, arranja chapéus, ó amolador!” Olho para a roda de amolar e as faíscas. “Para trás, pá, para trás, já te disse, olha que te magoas!”
Já em casa, no sofá, arfo da corrida, ligo o gravador. NADA! Ai, as pilhas! Trocadas! Recoloco-as, saio a porta, desço as escadas a dois e dois, volto a sair. O homem já não está. Corro pela rua, mas dele, nada! Procuro-o nas vielas, nos becos, pergunto por ele, bom dia dona Mariana, para onde foi o amolador, mas ela que não viu nenhum, embora de certeza algum tenha passado, pois, repare, começou a chover, e que eu fosse para casa, vá para casa, menino, que se constipa!
De novo à janela, nenhum Amílcar do outro lado, só chuva, dentro do gravador nada, só o tempo a despegar-se dos pedúnculos e a cair. E no entanto ouvi o homem e o pregão, e a avisar um menino de calções castanhos todo ele olhos para as faíscas que não se aproximasse, que poderia magoar-se.
– “Para trás, pá, para trás, que te magoas!”

5 Comments:

Blogger luisnaves said...

brilhante estreia, fernando. Isto é para ler em voz alta

9:27 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

adorei, parabéns

tb eu fascinada,
... fascinadísima
o som do amolador anuncia
é outono do Lumiar

este ano..já me questionei pl'a sua ausência..

5:49 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Saudades dos pregões. E que jeito me fazia agora um amolador. Como é que afiam facas hoje em dia?

6:03 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

??

1:23 da tarde  
Blogger L.G. said...

Aqui pelo campo também vão rareando... Ao ler-te relembrei outros sons que deixaram saudades. O do "azeiteiro" é um deles. Era um vendedor ambulante, com uma camioneta transformada em loja. Lembro-me da buzina estridente que nos fazia sair de casa a correr. Com sorte sacávamos um chupa-chupa. Mas o que queríamos mesmo eram os simples brindes de plástico que vinham dentro de alguns produtos (farinhas, creio). Obrigado pela recordação. Abraço!

2:52 da manhã  

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