Ser poeta é que era bom
Houve um tempo em que pensei escrever poesia. Não tinha muito para dizer, mas sabia perfeitamente como começar: “Está na hora do anteontem”. Isto porque pelas ruas da Estefânia andava um bêbedo pouco tradicional, que em vez daquele ar emborrachado tinha uma figura efeminada, com uma camiseta desabotoada até à segunda prega horizontal da barriga, à mostra um fio de contas sobre um peito depilado. Usava um chapéu pouco másculo, mole, e um pendente na orelha direita
(ou seria na outra?)
com um berloque que era uma obra de arte, latão martelado, um molho de missangas, croché de fazer inveja a muitas avós.
Chamávamos-lhe o Lixívia Delicada, apesar das unhas, um nojo tremendo, que com os anéis disfarçava.
(Admira como não lhos roubaram logo naquela noite na estação do Algueirão, a dos agarrados que tomara eles serem bêbedos).
Este gostava de desabafar a bons pulmões o que a alma lhe soprava no momento. Zunia o que lhe vinha à ideia, variava, tinha imaginação, criatividade. Mas quando passava da hora certa do abastecimento, quando na ruazinha pedonal do centro as pessoas se cruzavam para a esquerda e para a direita evadindo-se do emprego, e as moedas não davam para a garrafa, aí ele fincava os pés no pavimento de granito, empurrava bem as costas contra a parede do Jornal de Sintra, e em passinhos atrás ia subindo, até ficar de pé muito direito e fazer-se ouvir na perfeição: “Está na hora do anteontem!”.
Eu achava a tirada poética e cheguei a falar-lhe no projecto dos versos, para meu próprio espanto.
- Começa por ‘Enseadas de sombra’ – diz-me ele. – Percebes? En-se-a-das de som-bra.
E pôs-se a soletrar aquilo aos berros. A expressão conhecia-a eu: fecha um capítulo da Imortalidade do Kundera. Por acaso adoro-a, é lírica, cativante, ainda bem que alguém a inventou. Mas não é minha e eu tenho o meu brio:
- Podes-te calar com isso?! Onde é que ouviste isso?
- Foi na rádio… Ou então inventa uma história: Tanana, tal e tal… enseadas de sombra, ponto final acaba assim.
Não lhe dei troco. Não queria escrever história nenhuma e muito menos plagiar a inspiração de outros. Mas a propósito, ocorreu-me que ‘lindamente’ era palavra que me fazia azia.
(E ainda faz: ggzzzzz...)
Numa belíssima história, se lá pelo meio usamos ‘lindamente’, estraga-se tudo. É o mais ranhoso advérbio de modo…
- Da moda… - corrigiu o Lixívia.
- Não, de modo… advérbio de modo da snobada: “Tá bom?”, “Tou lindamente”. “As crianças, bem na escola?”, “Nem por isso, mas esses sapatos ficam-lhe lindamente”.
- Se calhar vivem num mundo lindo… - interpretou ele com um sorriso aéreo nos olhos semi-fechados pela terceira cerveja.
Ignorei, era para desconversar.
Novembro anoitecia e arrefecia. Anos antes, estaria eu a sair do emprego de contabilista-principal num instituto. Antes das reformas da administração pública, quando desataram a enxotar milhares para os excedentes, e daí para os excedentes dos excedentes. Embarcaram-me logo na primeira leva. Ao fim de três ou quatro machadadas no vencimento, mais algumas ilusões sob a forma de medidas compensadoras, vi-me sem conta bancária, mais tarde sem casa por incumprimento da hipoteca, depois sem dinheiro de bolso e, num instante de distracção, vi-me sem mulher, o que foi estranho, pois tinha-a há bem pouco tempo, coisa de ano e meio, talvez.
Depois o governo espremeu as privadas, tornando impossível fugir à crise por aí. Ora como dos pais pouco herdei e com a minha irmã não me dou, nunca sequer a visitei na Venezuela, deitei mão a trabalhecos de pedreiro e outros.
(Era onde eu andava ontem, quando veio cá e não me viu.)
Hoje considero-me na metade ascendente da curva: já vivo num quarto alugado, não tomo banho só ao fim-de-semana… Certos dias é que ponho aqui o chapéu no chão, sucedendo ao esganiçado dos pregões. Gosto de observar os tipos do banco à saída para o almoço, mato saudades dos fatos que já usei.
Bom, bom era ser poeta, condizia com esta situação, falta-me é talento. Mas pelo menos sou um bêbedo digno: uso trajes discretos, ninguém me ouve impropérios e, sobretudo, tenho ar emborrachado.
(Quando é que sai esta entrevista, já agora?)
(ou seria na outra?)
com um berloque que era uma obra de arte, latão martelado, um molho de missangas, croché de fazer inveja a muitas avós.
Chamávamos-lhe o Lixívia Delicada, apesar das unhas, um nojo tremendo, que com os anéis disfarçava.
(Admira como não lhos roubaram logo naquela noite na estação do Algueirão, a dos agarrados que tomara eles serem bêbedos).
Este gostava de desabafar a bons pulmões o que a alma lhe soprava no momento. Zunia o que lhe vinha à ideia, variava, tinha imaginação, criatividade. Mas quando passava da hora certa do abastecimento, quando na ruazinha pedonal do centro as pessoas se cruzavam para a esquerda e para a direita evadindo-se do emprego, e as moedas não davam para a garrafa, aí ele fincava os pés no pavimento de granito, empurrava bem as costas contra a parede do Jornal de Sintra, e em passinhos atrás ia subindo, até ficar de pé muito direito e fazer-se ouvir na perfeição: “Está na hora do anteontem!”.
Eu achava a tirada poética e cheguei a falar-lhe no projecto dos versos, para meu próprio espanto.
- Começa por ‘Enseadas de sombra’ – diz-me ele. – Percebes? En-se-a-das de som-bra.
E pôs-se a soletrar aquilo aos berros. A expressão conhecia-a eu: fecha um capítulo da Imortalidade do Kundera. Por acaso adoro-a, é lírica, cativante, ainda bem que alguém a inventou. Mas não é minha e eu tenho o meu brio:
- Podes-te calar com isso?! Onde é que ouviste isso?
- Foi na rádio… Ou então inventa uma história: Tanana, tal e tal… enseadas de sombra, ponto final acaba assim.
Não lhe dei troco. Não queria escrever história nenhuma e muito menos plagiar a inspiração de outros. Mas a propósito, ocorreu-me que ‘lindamente’ era palavra que me fazia azia.
(E ainda faz: ggzzzzz...)
Numa belíssima história, se lá pelo meio usamos ‘lindamente’, estraga-se tudo. É o mais ranhoso advérbio de modo…
- Da moda… - corrigiu o Lixívia.
- Não, de modo… advérbio de modo da snobada: “Tá bom?”, “Tou lindamente”. “As crianças, bem na escola?”, “Nem por isso, mas esses sapatos ficam-lhe lindamente”.
- Se calhar vivem num mundo lindo… - interpretou ele com um sorriso aéreo nos olhos semi-fechados pela terceira cerveja.
Ignorei, era para desconversar.
Novembro anoitecia e arrefecia. Anos antes, estaria eu a sair do emprego de contabilista-principal num instituto. Antes das reformas da administração pública, quando desataram a enxotar milhares para os excedentes, e daí para os excedentes dos excedentes. Embarcaram-me logo na primeira leva. Ao fim de três ou quatro machadadas no vencimento, mais algumas ilusões sob a forma de medidas compensadoras, vi-me sem conta bancária, mais tarde sem casa por incumprimento da hipoteca, depois sem dinheiro de bolso e, num instante de distracção, vi-me sem mulher, o que foi estranho, pois tinha-a há bem pouco tempo, coisa de ano e meio, talvez.
Depois o governo espremeu as privadas, tornando impossível fugir à crise por aí. Ora como dos pais pouco herdei e com a minha irmã não me dou, nunca sequer a visitei na Venezuela, deitei mão a trabalhecos de pedreiro e outros.
(Era onde eu andava ontem, quando veio cá e não me viu.)
Hoje considero-me na metade ascendente da curva: já vivo num quarto alugado, não tomo banho só ao fim-de-semana… Certos dias é que ponho aqui o chapéu no chão, sucedendo ao esganiçado dos pregões. Gosto de observar os tipos do banco à saída para o almoço, mato saudades dos fatos que já usei.
Bom, bom era ser poeta, condizia com esta situação, falta-me é talento. Mas pelo menos sou um bêbedo digno: uso trajes discretos, ninguém me ouve impropérios e, sobretudo, tenho ar emborrachado.
(Quando é que sai esta entrevista, já agora?)
Cara Cristina
Poderia aqui escrever um monte de frases bonitas e algo filosóficas para qualificar o seu texto,mas correria o risco de não o caracterizar a contento,assim sendo,só arranjo um adjectivo:excelente.
Parabens,cumprimentos.
E para o seu comentário arranjo eu outro adjectivo: muito generoso.
Obrigada.
CL
entendo lindamente :P a questão do "lindamente" que aqui é exposta!!! tb me irrito com o "perfeitamente" nalguns contextos.
enquanto dava o meu passeio matinal pelas vielas da bogosfera, dei por mim a parar no semáforo, mesmo depois de ficar verde, para assitir a esta conversa. conto voltar a estas paragens. agradou-me a voz individual e colectiva deste cantinho. até breve!