22.10.06

Downsizing

IV

O director deu de comer ao periquito, chamou-o a debicar no dedo, disse-lhe piu, piu, piu, abriu as persianas e exclamou sozinho, “cara al sol”, uf, como é difícil gerir uma empresa, que belo dia! (Acabei a história com este momento de calor, porque ela estava a arrefecer.)

III

Madalena, encontraram-na os filhos, três, no chão da cozinha, com os ladrilhos brancos de cerâmica no olhar, sem nenhuma carta ao lado – no meio dos comentários depois alguém falou de downsizing, mas outro alguém disse que não senhor, que quando a descobriram cheirava a gás. João Pedro foi visto a última vez junto ao rio, a deambular, mãos nos bolsos, com um sorriso só nalguns músculos da cara, nos zigomáticos e nos masséteres, e o olhar azul a boiar na água castanha. Rui encontrou que fazer, garantem os amigos, parece que arranjou uma escrita, ele não é capaz de estar quieto, é uma coisa personalítica – ainda bem, os nervos às vezes são bons para a sobrevivência, a gente enerva-se e vive mais tempo.

II

Bom dia, Madalena, vou direito ao assunto, como oportunamente a administração anunciou estamos num processo de downsizing, não, não me interrompa, o que tenho a dizer-lhe é pouco e não tem discussão, está dispensada, arrume a sua secretária, passe pelo serviço de pessoal, já falei com a dona Fernanda, e deixe a casa até ao meio-dia. É tudo.
Senhor João, já chamei o senhor Rui, chamo-o agora a si, para lhe dizer que infelizmente – creia-me, infelizmente, como sabe gostei sempre do seu trabalho, aliás já lho disse, não me lembro quando mas sei que o disse –, já não é preciso. Como fiz ao seu colega – eu não, a administração, que eu nestas coisas não sou ouvido nem achado, estou só a dizer-lhe o que me disseram a mim, ai as palavras –, a empresa dá-lhe dois meses de salário por ano para a deixar agora. Não, não é um despedimento, por favor, eu nunca faria isso – o nosso passado, temos um passado, fizemos uma caminhada juntos – é uma rescisão amigável, o senhor só aceita se quiser. Mas acredito que se a sua decisão for ficar, terá pensado nisso MUITO bem.
Well, Rui, como está? Gostei muito do seu último relatório, sabe? Há quantos anos está connosco? VINTE E CINCO? Ó homem, estava eu ainda na escola! É muito tempo, realmente. Os filhos? O Manel deve estar um homem!
Pois, o senhor deu-nos muito, e estamos muito reconhecidos por isso. Mas como sabe, é um homem de contas e de certeza que sabe, a crise económica, a subida do barril de petróleo – e certamente esse Saddam e esses terroristas do Fórum Social Mundial, o senhor já deve ter ouvido falar –, têm dado cabo da nossa actividade. Somos os últimos de uma época, meu caro, o senhor e eu, isto está tudo a mudar. A acabar.
Ora, é por isso que o chamei, e vou chamar ainda outros colegas, quero fazer-lhe uma proposta aliciante concebida para nós por especialistas de outplacement, que se fosse a si – e interprete-me o melhor possível –, aceitaria.

I

O director deu de comer ao periquito, chamou-o a debicar no dedo, disse-lhe piu, piu, piu, abriu as persianas e exclamou sozinho, “cara al sol”, uf, vamos a isto, que belo dia! Depois sentou-se, respirou fundo, abriu a agenda, capa de cabedal, chamou a secretária e pediu-lhe para convocar os senhores Rui, João Pedro e a Madalena, por esta mesma ordem!