Maestro de pássaros
A música começou a subir, a subir, encheu a sala e desfez-se num estrondo de percussões e metais agudos. Fiquei pregada à cadeira, minúscula na sala imensa, esmagada pela força daquilo tudo. Nunca tinha ouvido nada assim. Respirei fundo, a recompor-me, e olhei para o Jorge ao meu lado, num agradecimento mudo. Mas foi nesse momento, quando o homem-pássaro se preparava para entrar, foi nesse momento em que olhei para o Jorge, quase a apaixonar-me por ele, que tudo começou a correr a mal.
A cortina devia ter subido. À melodia nos violinos, seguiam-se as flautas e os oboés, logo depois o cacarejo pá-pá-pá-pá...Conhecia aquilo de cor. O Jorge tinha-me obrigado ouvir os discos semanas a fio, para a minha estreia na ópera, dizia ele. Íamos os dois à ópera e ele tinha tanto para me ensinar. Queria mostrar-me tudo. Esta versão do Krauss, tens de ouvir esta, insistia. Olha o veludo na voz, repara na doçura dos metais, os violinos a deslizar pela música. Um espectáculo, apontava a cada passo, impedindo-me de ouvir. Era preciso pôr o disco outra vez, repassar violinos e flautas, o canto dos violoncelos e das vozes, tudo misturado. Tão bem misturado.
Agora, sentada na sala cheia de dourados, antecipava cada momento, sabia dos violinos, das flautas e dos oboés. Do pá-pá-pá-pá... Foi por isso que o estrondo súbito, para lá da cortina cerrada, me soou a desastre.
Invisíveis no fosso, os violinos foram-se calando, as notas morrendo, desencontradas. Uma flauta solitária ainda entrou desfasada, mas extinguiu-se, sem ânimo. A cortina pesada no palco agitou-se por momentos e as luzes acenderam-se na sala, ao mesmo tempo que um murmúrio crescente se elevava na plateia, nos camarotes, cabeças voltando-se numa interrogação agitada. Olhei outra vez para o Jorge, certa de uma desgraça. A minha, a nossa, estreia na ópera. Uma desgraça.
E era. Soube-se quando um homenzinho saiu detrás da cortina e, absurdo no seu fato escuro e laço encarnado, contou num fio de voz que o homem-pássaro, mal atado nas cordas, tombara sobre o cenário atrás do pano. Tinha uma perna fracturada. Pediam muita desculpa, eram obrigados a cancelar o espectáculo. O dinheiro seria devolvido, era favor dirigirem-se às bilheteiras.
Saímos atordoados para o largo fronteiro à Casa da Ópera. Uma destas, dizia o Jorge inconsolável. E logo hoje, a tua primeira vez, não dá para acreditar. Eu também estava decepcionada. Pensava no cantor com a perna quebrada e arrepiava-me a ironia daquela queda de homem-pássaro. Uma multidão cabisbaixa saía do edifício, escoava-se lentamente pelas pequenas ruas laterais e sumia-se na cidade, que o sol banhava ainda, generoso, nesse fim de tarde de Verão.
No largo, restavam apenas um enorme bando de pombos, passeando-se tranquilos sobre as lajes brancas, debicando o chão, e nós dois, desamparados, aturdidos no meios deles, sem planos para a noite que acabara cedo demais. Quis consolar o Jorge. Mas, de rosto fechado, alheio a tudo, ele parecia entregue a maus agouros. Soube que as palavras seriam inúteis.
Olhei em volta, à procura de uma ideia, um apoio, mas só via os prédios sisudos com as janelas adormecidas, e os pombos que arrulhavam por ali, ao acaso. Foi então que um homem estranho, de cabeleira grisalha brilhante e fato colorido, surgiu no largo, vindo de uma ruazinha lateral, e avançou na nossa direcção a passo firme.
Por um momento pensei que fosse dizer qualquer coisa, mas nem olhou para nós. Em vez disso, parou junto dos pombos e, num movimento súbito, mas elegante e poderoso, elevou os braços como um maestro. E talvez fosse, porque os pombos subiram no ar, num fragor de asas, e ficaram ali a voltear, enquanto ele agitava as mãos e com isso lançava o bando numa direcção, para em seguida lhe impor um looping, um voo picado, e mais uma volta. Aquilo durou apenas uns minutos. Depois o homem baixou os braços, as aves pousaram no empedrado e ele, sem uma palavra, sem uma vénia, foi-se embora.
Incrédula, toquei no braço do Jorge. Viste aquilo, perguntei. Ele encarou-me pesaroso, assentiu. A tua primeira vez, não dá para acreditar repetiu ainda.
Foi ali que tudo terminou. Sem pensar muito, murmurei qualquer coisa, despedi-me à pressa e fui-me embora. Nunca mais vi o Jorge, nem o homem dos pássaros. Mas voltei muitas vezes ao largo. Os pombos continuam por lá. Arrulham, debicam as lajes ao acaso e, de vez em quando, voam.
A cortina devia ter subido. À melodia nos violinos, seguiam-se as flautas e os oboés, logo depois o cacarejo pá-pá-pá-pá...Conhecia aquilo de cor. O Jorge tinha-me obrigado ouvir os discos semanas a fio, para a minha estreia na ópera, dizia ele. Íamos os dois à ópera e ele tinha tanto para me ensinar. Queria mostrar-me tudo. Esta versão do Krauss, tens de ouvir esta, insistia. Olha o veludo na voz, repara na doçura dos metais, os violinos a deslizar pela música. Um espectáculo, apontava a cada passo, impedindo-me de ouvir. Era preciso pôr o disco outra vez, repassar violinos e flautas, o canto dos violoncelos e das vozes, tudo misturado. Tão bem misturado.
Agora, sentada na sala cheia de dourados, antecipava cada momento, sabia dos violinos, das flautas e dos oboés. Do pá-pá-pá-pá... Foi por isso que o estrondo súbito, para lá da cortina cerrada, me soou a desastre.
Invisíveis no fosso, os violinos foram-se calando, as notas morrendo, desencontradas. Uma flauta solitária ainda entrou desfasada, mas extinguiu-se, sem ânimo. A cortina pesada no palco agitou-se por momentos e as luzes acenderam-se na sala, ao mesmo tempo que um murmúrio crescente se elevava na plateia, nos camarotes, cabeças voltando-se numa interrogação agitada. Olhei outra vez para o Jorge, certa de uma desgraça. A minha, a nossa, estreia na ópera. Uma desgraça.
E era. Soube-se quando um homenzinho saiu detrás da cortina e, absurdo no seu fato escuro e laço encarnado, contou num fio de voz que o homem-pássaro, mal atado nas cordas, tombara sobre o cenário atrás do pano. Tinha uma perna fracturada. Pediam muita desculpa, eram obrigados a cancelar o espectáculo. O dinheiro seria devolvido, era favor dirigirem-se às bilheteiras.
Saímos atordoados para o largo fronteiro à Casa da Ópera. Uma destas, dizia o Jorge inconsolável. E logo hoje, a tua primeira vez, não dá para acreditar. Eu também estava decepcionada. Pensava no cantor com a perna quebrada e arrepiava-me a ironia daquela queda de homem-pássaro. Uma multidão cabisbaixa saía do edifício, escoava-se lentamente pelas pequenas ruas laterais e sumia-se na cidade, que o sol banhava ainda, generoso, nesse fim de tarde de Verão.
No largo, restavam apenas um enorme bando de pombos, passeando-se tranquilos sobre as lajes brancas, debicando o chão, e nós dois, desamparados, aturdidos no meios deles, sem planos para a noite que acabara cedo demais. Quis consolar o Jorge. Mas, de rosto fechado, alheio a tudo, ele parecia entregue a maus agouros. Soube que as palavras seriam inúteis.
Olhei em volta, à procura de uma ideia, um apoio, mas só via os prédios sisudos com as janelas adormecidas, e os pombos que arrulhavam por ali, ao acaso. Foi então que um homem estranho, de cabeleira grisalha brilhante e fato colorido, surgiu no largo, vindo de uma ruazinha lateral, e avançou na nossa direcção a passo firme.
Por um momento pensei que fosse dizer qualquer coisa, mas nem olhou para nós. Em vez disso, parou junto dos pombos e, num movimento súbito, mas elegante e poderoso, elevou os braços como um maestro. E talvez fosse, porque os pombos subiram no ar, num fragor de asas, e ficaram ali a voltear, enquanto ele agitava as mãos e com isso lançava o bando numa direcção, para em seguida lhe impor um looping, um voo picado, e mais uma volta. Aquilo durou apenas uns minutos. Depois o homem baixou os braços, as aves pousaram no empedrado e ele, sem uma palavra, sem uma vénia, foi-se embora.
Incrédula, toquei no braço do Jorge. Viste aquilo, perguntei. Ele encarou-me pesaroso, assentiu. A tua primeira vez, não dá para acreditar repetiu ainda.
Foi ali que tudo terminou. Sem pensar muito, murmurei qualquer coisa, despedi-me à pressa e fui-me embora. Nunca mais vi o Jorge, nem o homem dos pássaros. Mas voltei muitas vezes ao largo. Os pombos continuam por lá. Arrulham, debicam as lajes ao acaso e, de vez em quando, voam.
Gostei muito Filomena :)
Um excelente regresso
Obrigada João. Um beijinho