29.12.05

Microcosmos III

Eu tinha esperado dois meses por aquele momento e, agora, que ele se consumava, era dominado por uma terrível ansiedade. Um homem de fato e gravata, luvas brancas, entrou na sala. Caminhava como se fosse um mestre de cerimónias e trazia na mão um dossier fino. Foi a primeira desilusão que tive. O meu dossier era tão pequeno! O homem pousou a pasta sobre a mesa e saiu sem dizer mais uma palavra. Deixado sozinho, comecei a ler, sentindo-me a ler os meus pecados no confessionário do grande arquivo divino. Banalidades, banalidades, Lajos Kormányos, nascido em 1961, em Budapeste, blá, blá, blá, família de funcionários, sem história, não apresenta qualquer risco para o Estado. Li um documento esterilizado, com data de 1980, sobre a minha vida estudantil: faculdade de economia, não expressa opiniões políticas, é estudante medíocre, sem entusiasmo pela “construção do socialismo”. A linguagem absurda, já naquele tempo de fim de regime soava tão ridículo! Então cheguei à “folha”. O texto não teria mais de dez linhas e, apesar disso, era esmagador. O relatório da agente “Medusa”, nome de código, dirigido ao coronel Varga, com avaliação intermédia de um tenente da AVO: “A prazo, Kr. poderá tornar-se dissidente, recomendo maior vigilância”, escrevia o tenente. Data de Novembro de 1986. E “Medusa” relatava uma conversa que só (...) poderia conhecer: “Ao declarar o seu amor, Kr. afirmou com extrema clareza que odiava o regime e desejava o seu derrube. Mais disse que queria passar para o ocidente, levar-me com ele para algum país que tivesse sol e mar, liberdade e fantasia. Kr. também defendeu a acção directa, se necessário a própria luta armada contra o socialismo. Foram as suas exactas palavras. O suspeito está apaixonado por mim, o que poderá comprometer a minha...”. Não consegui ler mais, as lágrimas impediam-me a visão. Na memória, a doçura do sorriso dela. Fechei o dossier, enquanto a palavra “suspeito” martelava o meu pensamento. Eu, que a amara (...) De súbito, não desejava conhecer mais. Como se adivinhasse, o homem de luvas brancas entrou na sala, pegou na pasta e saiu. Vira muitos como eu a chorar ali. E isso não parecia impressioná-lo.


Microhistória de Lajos Kormanyos. Tradução do original húngaro: Luís Naves