30.12.05

Os amantes sem endereço

O rio parecia sereno, mas corria em maré cheia, numa violência interna que o plano da superfície ainda ocultava. Um velho cacilheiro avançou nas águas, arfante e cansado, e só os picos nervosos das ondas desencontradas, em choque com o casco, lembravam a sua aflição na corrente. O despertar gelado da manhã tinha um vento que obrigava os apressados viajantes a fecharem mais os casacos contra o corpo.


O barco fez a manobra de acostagem e colou-se lentamente ao cais, largando um sopro de fumo, negro e leve, que se elevou na atmosfera límpida. As gaivotas voavam nos turbilhões de ar, tentando equilibrar-se com as asas estendidas, mas sustentadas pelo vento, num equilíbrio precário que lembrava uma dança, de tal forma evoluíam no nada, umas em torno das outras.


Do barco repleto saiu a multidão. A quantidade de gente que desembarcou, homens e mulheres apressados, parecia inesgotável. Depois, havia menos gente, e ainda menos, até que ficavam só alguns mais atrasados.


Distinguiu-a então, com a sua figura esguia e frágil. A mulher viu-o também, encostado, cabelo revolto pela ventania, o cigarro apagado na mão.


Não se abraçaram, nem sequer se tocaram. A mulher parecia mais infeliz que nunca, olhou-o com uma timidez, um gesto de hesitação que lhe revelou tudo.


“Ele sabe de nós?”


Ela não falou. Nem sequer confirmou com um gesto. Semicerrou os olhos, por que o vento a fazia chorar e não queria chorar.


O homem largou fora a beata meio consumida e que a humidade apagara.


“Tens que sair de casa”, disse.


A mulher permaneceu em silêncio. Talvez tivesse sorrido amargamente, pois ambos sabiam que isso era impossível. Perderia as crianças.


“Vamos?”, perguntou ela.


O homem deu-lhe o braço, que a mulher aceitou.


E caminharam assim para o emprego, juntos, amantes sem endereço.


E as gaivotas pairavam no ar e o rio descia para o mar, como sempre fizera, numa corrente poderosa e invisível.

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9 Comments:

Blogger zazie said...

um óptimo 2006 para ti, para a Maria e todos os teus.

E que estes prazeres minúsculos se multipliquem noutros tantos em muitos dias felizes

beijocas

4:47 da tarde  
Blogger João Villalobos said...

Querida zazie,
Embora este post não seja meu (juro que o Luís Naves não é um gheterónimo) deduzo que os votos me sejam dirigidos.
Muito muito obrigado e que em 2006 continuemos a solidificar estas cibernéticas amizades electivas.

5:57 da tarde  
Blogger Paulo Cunha Porto said...

Isto é a consagração do que eu sempre denuncio: a comunhão do emprego como exortação ao adultério. À noite, cansados ambos, cada um achará a cara-metade uma bruxa ou um ogre. De manhã, fresquinhos, só encontram compreensão e atractivos um no outro. Depois trocarão. E começará tudo de novo...
Podem não ter endereço, mas o destino já está selado.
Dixit.

8:59 da tarde  
Blogger lebredoarrozal said...

BOM ANO:)

4:26 da manhã  
Blogger Paulo Cunha Porto said...

Feliz 2006 a Ambos os Autores.

3:55 da tarde  
Blogger luisnaves said...

sou um heterónimo

5:45 da tarde  
Blogger Ricardo António Alves said...

Feliz Ano Novo ao ortónimo, e já agora ao heterónimo.

2:28 da manhã  
Blogger Paulo Cunha Porto said...

Meu Caro Luís Naves:
Heterónimo, imagino, no sentido de fusão que a amizade dá. Mas não mais. Não só tive muito gosto em comentar este Seu texto, como também já colhi de um outro, por Si publicado no «DN».
Bem haja. E bom ano, mais uma vez.

1:52 da tarde  
Blogger luisnaves said...

Um excelente ano para todos

12:31 da tarde  

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