27.12.05

Microcosmos II

Tinha imensos planos. Lembro-me de falar neles numa tarde em que passeámos juntos, à beira do Danúbio. E contei-lhe tudo, a maneira como fugiríamos para o Ocidente, como iríamos viver em Paris, na liberdade e no et cetera. Mas as águas do rio (quase negras, nada têm de azul) corriam em sentido inverso ao dos meus sonhos. De contrário, bastaria deslizar numa jangada até à fronteira. Não pensem que a falta de liberdade é exclusiva da política. A mancha de um regime está em múltiplas situações mínimas, na desconfiança do vizinho que fala com reticências, na nossa frase estrangulada e na imaginação contida. É coisa mental, portanto, e cada um de nós é o seu próprio e melhor polícia. (...) Passeava com ela, andava fascinado pela sua beleza (um narcótico de perfume, a beleza) sobretudo o gesto míope de focar o objecto contemplado, o que lhe dava ar de estar muito interessada. Mais do que uma contemplação do outro, o amor é a satisfação pelo que julgamos ser o fascínio que o outro tem por nós. Ou o absoluto inverso: amamos mais quando nos rejeitam ou nos amam desvairadamente. Todo o ponto intermédio é banal. (...) defeitos de carácter contava-lhe alguns, embora a cegueira das ilusões juvenis me impedisse de os ver verdadeiramente. Por vezes, ela parecia discordar, mas nunca o dizia. Nunca optava pela dissimulação nem pela nudez. (...) Budapeste brilhava como uma jóia, a cidade vestira um tecido dourado que me impedia de perceber a sua impureza íntima. Era fim de tarde e o Verão terminara. No céu voavam farrapos de nuvens, que a luz oblíqua pintava de mil cores, como se fossem telas impressionistas. As fachadas dos prédios de Pest resplandeciam. “Nunca deixarei esta cidade”, disse ela, de repente, num acesso de franqueza. “Porquê”, perguntei. E ela disse: “Sou feliz aqui”. Dissera aquilo com uma autoridade que não deixava dúvidas e, para mim, foi como se um raio de luz a iluminasse de forma diferente, quebrando um feitiço que até aí não pressentira. O rio corria em sentido inverso ao dos meus sonhos e foi a última vez que passeámos juntos na margem do Danúbio.


Microhistória de Lajos Kormányos. Tradução do original húngaro: Luís Naves