28.12.06

Historieta de Natal 2

Caía uma bátega de um Outono adiantado, muito húmido, e as festas aí a chegarem de novo. Caía num bairro de subúrbio sossegado, livre de ruminantes trânsitos, com cruzamentos arejados, rotundas fluidas. Moradias de um, predominantemente dois, raramente três pisos, todas geminadas em pares. E pequenos jardins, rematados por gradeamentos de ferro forjado cuja diversidade de padrões e pinturas resultava num colorido tutifrutesco.
Era deste ambiente descontraído que se aproximava velozmente o Natal. Os habitantes dispunham-se a recebê-lo pendurando aqui e ali, ternamente, uma luzinha ou outra que brilharia nas noites chuvosas vindas da serra.
As vivendas dos números 11 e 13 da Rua de S. Frederico, à Avenida dos Companheiros, coladinhas como duas valvas de uma amêijoa, não destoavam deste tom natalício.
O casal de aposentados Caiado mudara-se há uma década para o n.º 11, e logo de início aí fizera entusiásticos melhoramentos, incluindo pintar de branquinho-robialaque um precioso relógio de sol, talhado em cobre antigo bem no centro do canteiro principal.
O n.º 13 era ocupado há precisamente um ano pelos Valcovo, oriundos dos contrafortes de Viseu: Júlio e consorte Marieta, ele bacharel em gestão de empresas. Mal chegaram, acolheram alegremente a quadra próxima, sublinhando de luzes brancas a porta da nova morada. Ficou bonita e logo outros moradores se manifestaram elogiosamente.
Armindo Caiado notou o ornamento ao sair para uma jogatana com os amigos, certa noite. Volveu imediatamente atrás, irrompendo pela porta da cozinha:
- Ó Preciosa, que dia é hoje?
- 17 de Novembro, porquê?
E ele num pensativo vaivém:
– São os novos aqui do lado: já penduraram as luzes de Natal, e falta mais de um mês. Costumamos ser os primeiros...
Regressa cabisbaixo ao exterior e lança um olhar agastado à iluminação vizinha: Tudo branco, que coisa tão esmorecida! O Natal é vida, é cor!
Nesse serão o convívio no café soube-lhe a borras. Às seis e trinta do dia seguinte pulou da cama como uma mola: não esperaria nem mais um minuto para desenterrar do sótão os enfeites natalícios! Luzes em série brancas, vermelhas e verdes que decorariam, como sempre, o alçado frontal da casa, tornando-a a mais adornada do bairro.
Tudo isto parece que foi ontem. Hoje, um ano depois, sobre o bairro cai uma bátega de um Outono adiantado, muito húmido, e as festas aí a chegarem de novo.
Quinze de Novembro e Caiado numa agitação desenfreada.
- Este ano a gente antecipa-se, Preciosa! Ou queres ser apanhada desprevenida outra vez?
- Antecipa o quê? Desprevenida, eu? – A mulher distrai-se do café com leite. De vinco na testa, observa o marido a acartar com os sacos dos enfeites escada do sótão abaixo e a testar ansiosamente as gambiarras. Mal pudera ele esperar pela luz do dia para se deitar à tarefa de saudar quadra e vizinhança com os frisos luminosos da sua tradição refulgindo aos ventos.
Ao fim do dia o vizinho deparou com a iluminação, e alegrou-se. De manhã, na ingénua tentativa de se sintonizar, adquiriu também ele gambiarras em vermelho e verde e deitou mãos à obra.
O casal do 11 regressava das compras mensais pela tardinha, quando deu de caras com duas casas siamesas cintilando lado a lado, em tons patrióticos e bentos, ao lusco-fusco do Outono. Preciosa espreitou o marido pelo canto do olho e viu a irritação avermelhar-lhe o pescoço até lhe inundar as feições redondas.
- Olha que bonito que isto fica assim... – arrisca ela.
- Mas é que isto não fica assim! – declina o rubor indignado do Armindo, tomando por afronta o que os vizinhos intentavam como agrado. Todo inteiriçado, fechou-se ao mundo até se deitar. Sonhou que decorriam anos e a família Valcovo recebendo o Natal cada vez mais cedo, a ponto de se ver ele, Armindo da Ressurreição Caiado, compelido a programar as decorações mal finda a Páscoa!
De manhãzinha, desapareceu rumo ao centro comercial. Quando Preciosa teve licença para sair ao jardim, novos enfeites alindavam a casa, destacando-a da sua congénere: uma gorda gambiarra azul debruava agora a esquina do prédio, directamente do telhado até ao empedrado; uma outra, com um sofisticado regime de piscadelas em rosa-vivo, dava vida aos cantos do alpendre e da varanda. Armindo sorria, vaidoso, de mãos na cintura admirando o brilho da própria glória.
Os Valcovo estranharam a exorbitância do colorido do lado, mas pouparam-se a interpretações precipitadas. A seu tempo, receberam o 1º de Dezembro colocando em posições estratégicas quatro estrelas cadentes: a maior sobre a chaminé exterior, as três menores dentro de cada uma das janelas da frente.
Regressava Caiado da caminhada digestiva quando recebe como um murro no estômago o upgrade festivo da moradia vizinha: Há gente com uma mania das grandezas! Durante dois dias maldisse entre dentes a vizinhança. Ao terceiro, a mulher já não lhe aturava o feitio:
- É o que faz andares desocupado. Arranja um entretém!
Bem-mandado, o norte-alentejano arrancou direito a uma loja dos chineses e voltou com o bolso e a disposição muito mais leves. Trabalhou afincadamente, exposto à intempérie da tarde, com um gorro de orelhas axadrezado e luvas de meios dedos. Ao anoitecer, enregelado mas todo vivaz, lançou um sorriso desabrido à obra.
A casa ganhara foros de pirilampo: Cada uma das janelas apresentava uma gambiarra multicolor e musical; do lado esquerdo da chaminé pendia uma rena com um gorrinho vermelho e à direita um conjunto de embrulhos em tons de azul; pelo corrimão das escadas da frente descia enrolada uma fita em dourado espampanante, vindo a terminar num trio pendente de bolas vermelhas.
Se Preciosa quase se ofuscou ao chamá-lo para jantar, já Marieta Valcovo, a chegar de uma oferenda a Santa Leocádia, estremeceu com a ostentação.
- Ou são uns grandes simplórios ou o gajo está a provocar! - comentou o Valcovo, maldisposto com contratempos da vida e subitamente bem disposto a arregaçar os princípios de sã vizinhança, mergulhando no espírito do despique.
Estava o rastilho tão aceso como as iluminações natalícias.
Às vinte e duas e quarenta e cinco, era ver Júlio fixando um pinheiro artificial no canto da varanda, enquanto Marieta reproduzia a composição no alpendre abaixo, com efeito visual de grande coerência. Nas janelas, já enfeitadas de lindas estrelas cadentes, pendurou ele duplas de sinos que acendiam em alternância - ora um, tlim, ora outro, tlão - repicando silenciosamente. A pérgola do corredor da garagem embelezaram-na com uma gambiarra prateada de luzir intermitente, que culminava num jarrão com plantas secas pintadas a spray acobreado. Mal tiveram forças para cear, mas deitaram-se naquele 9 de Dezembro com a sensação do dever cumprido.
É desnecessário dizer que o colorido alheio acinzentou os humores de Armindo da Ressurreição. O gestor lá por ser gestor não era mais do que ele! Urdiria ali mesmo um plano de combate a invejosos.
O primeiro lance consistiu em pendurar duas bolas psicadélicas rotativas, que emitiam toda a gama de cores, uma no pinheiro branco artificial, a outra a meio do tecto do alpendre. A grinalda que enfeitava a porta desde o primeiro ano foi enriquecida com uma fita púrpura, animada de um dispositivo que produzia som de sininhos muito próprio. Logo abaixo, um Pai-Natal insuflável do tamanho de um menino da quarta classe guardava a entrada. Três anjos, de vestes de veludo grená como os cortinados das óperas, abrilhantavam os picos de outros tantos arbustos. Através das janelas resplandeciam cá para fora composições luminosas em forma de vela - com pavio, um pingo de cera a escorrer e tudo.
A senhora Caiado tentou espreitar pelos vidros, mas a profusão de alegria era de molde a toldar-lhe a visibilidade para o exterior. Saiu pois pelas traseiras, percorreu boquiaberta o corredor da garagem, entretanto velado por anõezinhos de cerâmica intercalados com os reis magos e, ao acercar-se do jardim da frente, presenciou uma versão artesanal da Feira Popular: com imaginação de criança e paciência de mágico, Armindo usara uma enorme mangueira tricolor cuja luz ora corria para a esquerda ora para a direita, num efeito muito original; fizera-a partir lá de cima da chaminé como se fosse ideia do próprio Criador, descer pela aresta do telhado e rebordar delicadamente o azulejo aex-libris da família “Sonho de Nossa Senhora”.
- E por último... – Braços triunfantes estendiam-se na direcção do toque final: um imponente e vigilante “Merry Christmas!” luzia alcandorado de lés a lés do telhado.
Preciosa mirou tristemente o marido, questionando-se sobre que carga de água o levara a confundir a época com um arraial minhoto. À coca por trás dos cortinados, os Valcovo não se continham: "Jesus, que repimpado mau gosto!"
Mas Armindo sentia-se profundamente satisfeito. E crendo-se insuperável jurou, em nome das divinas simplicidade e harmonia que devem presidir a qualquer Natal, não mexer nem mais uma palha. Ou nem mais uma gambiarra.

A 21 de Dezembro, dia de São Pedro Canísio que Caiado tanto estimava, o nascimento de Jesus tinha as boas-vindas mais do que garantidas. Rapidamente a colorida disputa se afamou pelas redondezas. Nas vésperas do Ano Novo, excursões familiares deslocavam-se ao cenário, no intuito de acrescentarem à alegria da quadra um momento lúdico mais hilariante. Locais e familiares de fora divertiam-se perante aquele espectáculo a duas vozes, e houve quem troçasse de um miudito que queria andar de carrossel enquanto não chegavam os foguetes.

3 Comments:

Blogger JCA said...

Cara Cristina porque será que os meus posts não aparacem!Desculpe,mas já não é o primeiro,postei no anterior.

Cumprimentos e Bom Ano.

12:32 da tarde  
Blogger Cristina Leimart said...

Caro/a ergela

Também já aconteceu o mesmo a algumas respostas minhas. Vou tentar saber porque não ficam registados. Obrigada e Bom Ano para si também
CL

1:47 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Uma historieta hilariante. Gostei.
Bjkas
Paula leitora

9:17 da tarde  

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