18.12.05

Quase

Esta é uma cidade rica e quase todos os seus habitantes são ricos. Foi este o pensamento que Madou repetiu e repetiu, ao entrar na pizaria. Cheirava a pão e, lá fora, estava frio. O africano observou atentamente: um homem de barba grisalha, sozinho na sua mesa, escrevia num bloco amarelo; quatro raparigas louras e largas riam em delírio, enquanto bebiam um grande jarro de vinho branco, quase vazio; duas mulheres de meia idade falavam dos filhos, usando a linguagem áspera daquele terra; um grupo de amigos italianos, três homens de negócios, do escritório do prédio ao lado. E os empregados quase morenos; a dona do restaurante, a ruiva de ar simpático que namorava o rapaz espanhol que bebia vinho na mesa da zona dos fumadores. "Jus pressés", dizia a placa. Madou entrara e ficara ali de pé, à espera que alguma coisa acontecesse, a saborear o calor da sala. Um dos empregados aproximou-se, meio zangado. Perguntou a Madou se preferia mesa de fumadores. Que sim, respondeu o africano, acrescentando, num tom cantante, que não teria dinheiro para consumir. A ruiva aproximara-se, intrigada com o intruso. Disse, com gentileza, que se ele não podia pagar, então também não poderia ficar ali especado, a empatar o caminho à clientela. Ela era simpática, quase amorosa, pensou Madou. Depois, afastando aquela ideia, o africano disse que o problema era o frio: "Não me consigo habituar ao frio lá fora", explicou, como se fosse lógico naquela circunstância, ou isso pudesse interessar àquelas pessoas. O homem que escrevia no bloco amarelo ergueu a cabeça, mas sem ouvir; ou, se ouvira, sem se interessar demasiado. A ruiva e o empregado nada disseram. O amante espanhol aproximava-se. Ao receber os olhares frios e indiferentes que se tinham pregado na sua carne, o africano Madou deu meia volta e regressou à escuridão da rua, que o reflexo da neve quase iluminava.

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Não dói receber o olhar gélido da noite, que não nos conhece, o que dói, muito, é o não-olhar de quem está por perto...

Que prazer esta prosa.:)

11:59 da manhã  
Blogger João Villalobos said...

Cara menina Innie. Em nome do meu amigo, Luís Naves, muito agradeço o comentário.
Ele tem já publicados dois romances na Campo das Letras, «O Silêncio do Vento» e os «Reis da Peluda» que são, qualquer um deles, verdadeiros prazeres maiúsculos.

1:36 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Que texto lindo! Como a vida seria muito mais valiosa se o ser humano aprendesse a ver para lá das aparências. Aprender a observar com a alma. A compreender o olhar de quem nos mira. É este o sentido da vida.
Adorei, Luis. Mesmo.

3:50 da tarde  

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