Feliz Natal, senhor António
O senhor António era um homem banal, mas teve um sonho invulgar: deveria erguer em frente à sua casa um enorme presépio, com figuras em pedra. Foi uma ideia que se transformou em obsessão. Os vizinhos começaram por reparar naquele estranho jardim, que nascera bizarramente no terreno ao lado da casa baixa. Depois, todas as noites, viram o senhor António na tarefa insana de cortar lascas às pedras, numa obsessão, iluminado apenas por uma lâmpada improvisada, fizesse calor ou frio, sob a chuva ou sob o imenso espectáculo do céu repleto de estrelas. A coisa foi crescendo, até se notar que seria um presépio, com todas as suas figurinhas esculpidas em estilo realista que desagradou aos críticos de arte da vila. Alertadas, as autoridades visitaram a inusitada obra, exigindo ao senhor António que pedisse uma licença municipal, pelo menos isso, para tornar o presépio conforme aos regulamentos camarários. Embora estivesse falido (a pedra fora cara) o senhor António percorreu o calvário da burocracia, pagou as coimas da lei e preencheu mil papéis burocráticos. Muitas pessoas iam de propósito àquela rua anónima da vila, quase no final da zona urbana, para verem o louco a trabalhar na sua visão. As figuras (17, ao todo) iam nascendo, com a família de Cristo, reis magos, pastores, animais, alguns sorrindo, outros numa pose quase triste. Os transeuntes olhavam para aquilo e lamentavam o ar tosco, a maneira ingénua, o que consideravam falta de beleza. Alguns torciam o nariz, abanavam a cabeça. No final, embora já não tivesse dinheiro para comer, o senhor António enfeitou tudo com uma iluminação que acentuava as sombras e criava drama. Na véspera de Natal, muita gente foi ver o presépio. Quase ninguém gostou, mas um grupo de três crianças foi ter com o escultor e uma delas disse: "Feliz Natal, senhor António". Eu era uma dessas três crianças.
O presépio de pedra já não existe, o senhor António já não existe. A rua da vila é hoje diferente. A estrada passa pelo meio do terreno. Já não há casas baixas, apenas prédios de apartamentos, 17 ao todo.
O presépio de pedra já não existe, o senhor António já não existe. A rua da vila é hoje diferente. A estrada passa pelo meio do terreno. Já não há casas baixas, apenas prédios de apartamentos, 17 ao todo.
Magnífico.
Quanta inspiração, meu amigo!! Jorra-te nas veias...
permita-me um apontamento de teologia básica: o sentido do Presépio é o Calvário.