31.7.06

trinta anos

lembro-me de um tempo em que era possível ter trinta anos
e vestir camisa engomada todas as manhãs, mesmo no verão,
sem que nos acontecesse ficar suados ou tristes com a vida -
era qualquer coisa assim deste género que se via, ou vi eu,
num poema que começava de uma maneira muito ternurenta,
"encomendei os teus livros escolares na papelaria esta manhã".
lembro-me de um tempo em que era possível ter trinta dias
seguidos de férias e ninguém que nos chamasse pelo telefone
ou porque não éramos precisos para nada por ser agosto
ou porque nas casas da praia não havia telefones, ou havia,
mas só as namoradas de verão é que sabiam deles.
era esse o tempo de ter trinta anos e sem barriga de cerveja,
em que os bailes eram todos cheios de amigos e vinho bom,
em que as mães nos faziam o jantar e nos ofereciam dinheiro,
porque apesar de sermos trabalhadores e honestos,
éramos filhos, filhos até ao dia em que no casamento,
passávamos a ser filhos por fora, nas mãos de alguém pior.
lembro-me de um tempo em que era possível ter trinta anos
e lembro-me desse tempo nos filmes ou nos livros que leio,
não nas mãos onde me abraço porque é verão e tenho frio.
lembro-me de tudo isto ser possível ou então não me lembro,
fico só sentado no sofá da minha sala a olhar a televisão
e a imaginar coisas que sempre foram possíveis sem o serem,
porque uma boa verdade não ultrapassa nunca uma boa ficção.

28.7.06

Desenho de Parede de Inês Leitão (uma colagem e acrescentos)

Faltavam dois corpos deitados no chão do jardim
eu e tu (os afectos) - o cheiro do mar quando
um açaime me atou a boca e os ouvidos
porque havia alguém com a mesma cara que tu
a povoar, disfarçadamente, este enorme vazio.

um momento de cheiro a relva fresca
dedos apertados dentro do sapato
comprimidos na carteira
- eras mesmo tu no fundo da rua
ou talvez fosse só uma maneira que eu inventei
para poder, finalmente, chorar.

27.7.06

Desenho de parede

Faltavam dois corpos deitados no chão do jardim para que tudo ficasse como um dia foi: eu e tu de corpo encostado
( quando eras vivo e as coisas faziam sentido)

num passado de olhos fechados a chegar perto das mãos, a proximidade a viabilizar o toque dos afectos
(os afectos)
- eu nunca te vou poder perdoar por teres morrido, desculpa: por muitos anos que passem, por muito que os jornais na rua digam que o tempo passou

(...) há este enorme vazio feito de buracos, pedras, paus e folhas secas a perguntar por ti
- perdoar-te por teres morrido: pensar em perdoar-te sem roer as unhas, sem encolher-me na cama, sem lágrimas com comprimidos contados dentro da carteira à espera de um copo de água que me engula

o som da música a tocar-nos nos pés naquele dia, a fazer-nos os dedos dos pés mexer como se a ideia de vida feliz fosse um momento de cheiro a relva fresca num dia quente de dedos a movimentar-se apertados dentro do sapato
- eu guardo comprimidos na carteira desde o dia em que morreste
(gosto deles e eles dizem gostar de mim)

porque já não te posso olhar:
às vezes sinto as minhas pernas correr à minha frente quando te vejo no fundo da rua sem seres tu, a ser eu e a minha cabeça a fazermos as minhas pernas correr para ti num sítio onde não existes por não seres tu, por não poderes ser tu, eu a fugir daquilo, as minhas pernas a passarem-me à frente do corpo; as saudades a fazerem-nos tropeçar e cair, e eu a chorar sozinha na rua com a mala e os comprimidos e a minha cabeça à espera que algum nos tire dali e nos faça sentar, em fila, no passeio
eu
as minhas pernas
a minha mala
os comprimidos e a cabeça ao lado
(temos todos tantas saudades da tua forma quieta de rir)

quando retornar é impossível.
Volto ao sítio onde te enterraram na esperança de que te sintas quente e um dia voltes para me ver.

26.7.06

O infiel «jardineiro»

Deveria ter sido simples, mas não foi.
- Não há volta a dar, disse ele.
Podia escrever que a seguir encolheu os ombros, mas nem isso. Dizer uma frase destas sem mexer um músculo com excepção dos faciais é, sei-o bem, a resignação absoluta ao desiderato da vida.

(Aqui, entra aquele chavão dos segundos que pareceram intermináveis, mas é que pareceram mesmo).

- Talvez…
Ia jurar que a voz dele subiu uma oitava, só não juro porque nada entendo de música.
- Talvez…, respondi-lhe pegando na deixa.
- Talvez a peça não seja esta, murmurou.
Murmurou, mas depois repetiu tão alto que me assustou o gato, octogenário em anos humanos. Estava ofuscado pela própria sugestão e todas as suas implicações, primárias e secundárias.
- Pode ser, afirmei eu.
Afirmei mas não devia ter afirmado. Resvalei para terreno proibido. Saí de pé, poderei mesmo dizer.
- Diz isso porquê? Percebe alguma coisa disto? Sabe há quantos anos reparo máquinas destas? Faz ideia?!
Aqui a voz subiu duas oitavas, acho eu.
- Ouça, disse por dizer. O senhor Abílio é que sabe da poda.
- Da poda? Eu não sei nada de poda. Não sou jardineiro. Mas disto percebo. Disto percebo eu desde que nasci.
- Ainda bem, ainda bem que percebe. E o problema é da peça ou não?
- Olhe, quer um jardim? Eu dou-lhe um jardim. Imagine que tem uma roseira há vinte anos. E que há dez não lhe nascem rosas. Pode pôr adubo, pode mudar a terra. Mas a roseira morreu, entende? Morreu!
Aqui a voz subiu-lhe (suponho) três oitavas e o gato fugiu.
- Então e a peça?
- Não há volta a dar, repetiu ele.
Desta vez, encolheu os ombros. Mas já estava de saída.

24.7.06

O Duque vende baguetes

Algumas noites são mais compridas do que os nossos dias. Prolongam-se no tempo até à nossa infância, quando nos separamos de um amigo e um cão nos acompanha até à porta de casa. Bebemos com certeza um pouco demais, como sempre bebemos demais. É quase madrugada e no caminho passamos pelos mesmos lugares por onde passámos desde sempre, sendo outros.
A memória, com a idade, torna-se geografia. E cada banco, cada jardim, cada pequena loja ou casa que se transforma, ou deixa de ser, perturba-nos e apaga-nos das páginas da sua história.
Estou com outro whisky na mão, sei que não devia mas nada posso fazer. O lugar é o O.K. onde o João serve ao balcão a cem metros do lugar onde sempre viveu. As paredes pintadas de fresco não mudam nada, a mesa de matraquilhos permanece e as de snooker também. Cascais é isto. Não as poliglotas esplanadas do Largo Camões onde os bares se chamam pubs mas isto. O O.K. Condenado a deixar de existir um dia, entre o hipódromo e o Pavilhão dos Desportos, frente ao Museu do Mar que por sua vez foi outrora o aristocrático Clube da Parada. O O.K., que já não ostenta o sinal luminoso com o stick resplandecendo as glórias de uma equipa, tantas vezes, campeã.
Aqui, como em nenhum outro lugar, encontro as caras que não vejo desde o liceu, a primária às vezes. O Caravela, por exemplo, não se chama Caravela. É assim o nome dele desde que me lembro porque mora por cima do restaurante com esse nome, o Rui. Não me peçam o apelido, tivessem perguntado antes. O Caravela não diz os cês, quando insulta alguém diz «pró ‘aralho!» mas toda a gente percebe.
Ele agora acabou o rol das lembranças e grita-me «O Duque vende baguetes!» e a frase, ali de whisky na mão, atinge-me com toda a surrealidade da absoluta falta de contexto fora da cabeça dele.
«O Duque vende baguetes? Qual Duque?».
«O Duque of Wellington, ‘aralho!».
Ó pá, eu nunca pus os pés nesse sítio, mais outro desses pubs á inglesa para os ingleses, em plena Rua Direita à esquerda de quem desce, nunca calhou. Mas ele sim. Devia ter grandes memórias do Duque, o ‘aravela. E agora, pelos vistos, o Duque já não existe e onde outrora existiu vendem-se baguetes e o Rui quer saber onde está, que não lhe troquem as voltas à memória, que não lhe curto-circuitem os neurónios como na noite em que decidiu ir beber um copo ao Duque e, afinal, saiu-lhe a baguete atravessada no caminho.
Estou no O.K. Muito mais tempo não. Estas conversas dão para o sentimento e aqui, em Cascais como em nenhum outro lugar, percebo tudo. Uma epifania ilumina-me o espírito, obscurece-me talvez fosse melhor dizer. Aqui, num lugar condenado à execução sem data marcada estão todos aqueles que não terão depois para onde ir: O João e o Miguel e o Mosca, cujo nome verdadeiro não me perguntem porque nunca o soube, embora todos os dias o veja na rua quando compro os jornais.
E nós, que os tratamos por tu porque crescemos com eles, no mesmo sítio que eles, mesmo ao lado deles, para onde vamos nesse caminho até casa com o cão que nos acompanha com whiskies a mais? Para onde vamos atravessando o jardim que nos ensinou a andar de bicicleta?

Adaptação de um artigo publicado no Dna, numa outra vida, agora que o O.K. deixou definitivamente de existir.

a minha vida paralela (1)

O bairro colonial fica numa colina virada para ocidente. Não é muito mais do que um conjunto reticular de ruas, alinhamento imperfeito de casas dos anos 40, algumas mais antigas. Possui o mesmo rígido bordado de carros estacionados que enfeita outros bairros da cidade, linhas paralelas, metálicas e coloridas. Mas quando se observa com cuidado, olhando os habitantes, descobre-se uma diferença: o bairro colonial é mais étnico, tem africanos e brasileiros, culturas variadas. Se alguém entrar ali, pode ter a sensação de entrar num mundo separado.
O bairro nunca faz parte do meu roteiro, mas naquele dia entrei pela rua principal, por me querer afastar de mim, por estar zangado com a vida: tivera uma banal discussão no escritório; (ou em casa?) Já só recordo o estado de alma, o estar fora de mim. Saí, num repente, a bater com a porta, para espairecer. Andei por uma avenida, a ver a gente que passava. Depois, precisei de me embrenhar numa solidão ainda mais funda.
Subi, sombrio, a calçada íngreme do início do bairro colonial. Na rua perpendicular, que deixara, passavam multidões, mas poucos se desviavam na direcção que eu tomara; questões de fama do lugar, talvez.
Os prédios tinham o estuque estalado, persianas de janela sujas, roupa pendurada ao sol, grafitos nas paredes (uma diferente escrita, uma língua separada), caixotes do lixo a transbordar. E ouvia-se, vindo do interior de cada casa, um rumor de vida, vozes e murmúrios, como se houvesse fantasmas em cada pedra daquele castelo, pois que tudo aquilo era somatório de fragmentos.
(...)
Dizem que a oscilação de uma flor ao vento pode ter implicações cósmicas. Sinceramente, não acredito. Mas, por vezes, essa ideia falsa faz-me pensar nos complexos caminhos do acaso. O que me levava ali, senão uma torrente irresistível de decisões demasiado frágeis para serem materiais? E porquê naquele tempo específico, naquela situação e conjuntura, cinco minutos desfasado do gato sonolento que não vi porque se distraiu com um passarinho esvoaçante? Sincronizado exactamente com o gesto da mulher que se postara à sombra, na porta da sua loja de objectos inúteis e que me viu avançar rua acima, sei lá com que pensamentos na mente? E as nossas existências perpendiculares cruzaram-se naquele exacto ponto do tempo e do espaço, naquelas únicas circunstâncias, e não em outras distintas, sabia-se lá por que vontade! E, alheio a essa coincidência, subi como caminha o sonâmbulo que não sabe para onde vai, ou que sonha algo de distinto da realidade que os seus passos incertos produzem...
(...)
Havia uma espécie de planalto, em que as ruas perdiam a inclinação. As mesmas calçadas portuguesas, que pareciam tecidos roídos pelas traças. A patine nas fachadas, de tom pastel, as pequenas lojas cheias de misteriosos nadas.
(...)
Tinha marchado muito e a minha fúria dissipara-se. Olhava as coisas que me rodeavam, já com um gosto diferente. De certa maneira, mudara, embora não soubesse o que mudara em mim. Então, passei em frente a um grupo recreativo, um café com grupo recreativo, com pessoas dentro, lembro-me vagamente, sem saber já o nome que estava no cimo da porta larga, de alumínio. Recordo-me bem do símbolo e da bandeira, igual à da Itália, mas com uma estrela no campo branco. E já tinha passado quando o homem magro que estava à porta, a observar-me, desconfiado, deitou a beata de cigarro ao chão e fez assim: “Pst! Pst!”.
Não gosto de reagir a chamamentos daqueles, embora soubesse que ele se dirigia a mim, visto como intruso.
“Ó Manel”, insistiu ele, a estender o braço na minha direcção, depois virando-se para dentro, gritou: “Venham ver, tá ali o Manel da Lúcia”.
Aquilo era comigo, não o podia ignorar, embora não me chame Manel e não conheça nenhuma Lúcia. Não senti ameaça, ou algo assim, percebi de imediato que tinha sido confundido com outra pessoa. Estava calmo, via agora o mundo no seu lado favorável e virei-me para o homem fininho, disposto a esperar por ele, a enfrentá-lo, a rectificar o equívoco.
(...)

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A minha vida paralela (2)

Saíram outras pessoas da taberna, do interior do grupo recreativo, e todas me olharam. Alguém repetiu “O Manel da Lúcia!” e parecia espantado; outro homem acrescentou, divertido: “Voltou, o sacana!”.
Os tipos estavam ébrios. Caras patuscas, narizes vermelhos, sorrisos exagerados, vozes rastejando. Rodearam-me, mas sorridentes e interessados. Tentei negar a identificação, mas levaram-me para o interior do grupo recreativo, para dentro do bar atascado, e puseram-me um copo à frente. Que tinha de beber para comemorar o regresso, disse um deles, e chegaram outros homens, atraídos pela comoção geral: houve palmadas alegres nas minhas costas, alguém que notava que eu vinha mais gordo, outro a concluir que parecia em grande forma, igualzinho ao que sempre fora.
O equívoco era tão extenso, que a situação não deixava de ser engraçada, por isso não resisti. Deixei-me levar pela torrente de emoções daqueles desconhecidos, sem perceber patavina do que diziam, a tentar agarrar no ar o débil cordel de uma história que me arrastava como uma brisa leva um pequeno insecto.
(...)
Nas entrelinhas do que diziam, fui percebendo que eu, Manel da Lúcia, desaparecera dois anos antes, sem razão aparente. Aqueles eram os meus amigos, digo assim, meus amigos, embora jamais tivesse visto algum deles. Iam contando o que se passara, numa confusa sucessão de informações inúteis, entre as que desmentiam a história que até ali eu formulara, depois desfazendo de novo o mosaico, reposicionando cada pedaço, numa reconstrução sem nexo...
(...)
Enfim, desaparecera durante dois anos; tinham julgado que eu fora morto numa luta de bandos criminosos; depois, admitiram que emigrara para longe; fui sendo esquecido; e a Lúcia, inconsolável, coitada, deixada para trás, já a tinham chamado. Foi ao perceber este pedaço que me comecei a assustar...
(...)
e, de repente, ali estava ela. Uma figura franzina, de mulher magra e triste. Muito portuguesa, vestida de escuro, com a face pálida e mãos rudes. Uma cara que, embora não passasse muito dos trinta, começava a ser roída por rugas precoces, que lhe tornavam o olhar melancólico e pesado. E, em contraluz (recortava-se na porta, com a luz solar da rua por detrás) causara a imediata suspensão do vozear bêbado dos homens, a figura que adivinhei ser Lúcia, a minha mulher, disse apenas, numa voz de aflição:
“Onde é que ele está?”
Os homens afastaram-se de mim; ela observou-me (eu estava bem iluminado pela luz da rua); Lúcia levara a mão à boca, para suspender um grito; aproximou-se, numa comoção; ficou com os olhos enormes e míopes a um palmo da minha cara. E, ao não me reconhecer, o esgar de consternação, a repugnância, o medo insólito, um pequeno grito de dor...
Fui atrás dela, ao perceber os terríveis efeitos daquele equívoco. Os bêbados tinham-me confundido e chamado a mulher do homem cuja identidade eu tomara por alguns minutos. Era como se eu, porventura involuntariamente, estivesse a magoar aquela Lúcia pela segunda vez, mas agora de forma mais cruel ainda
“Mas, espere, é um terrível equívoco”, disse eu, a persegui-la pela rua.
Ela andara vinte metros e, de súbito, ao sentir-me ali, enfrentou-me, num desespero:
“Porque é que não és tu?”
Como se aquilo fizesse sentido, segurei-a pelo braço, tentado fazê-lo com doçura:
“Foi um engano” disse eu, “confundiram-me com o seu marido... Lamento”
Lúcia acalmara-se. Por um momento, que se prolongou inexplicavelmente, imaginei que Lúcia era, de facto, a minha mulher; imaginei a minha vida paralela, estranhamente desabitado da própria realidade. Depois, a sensação dissipou-se. Ela conformara-se com a sua solidão, a sua perda, ou lá o que era, destino, talvez, acaso.
E ali nos separámos. Lúcia, sofrida; eu, de novo no exterior daquele enigma.
Desci pelo caminho que antes tomara, até à avenida perpendicular.

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21.7.06

férias

há uma espécie de névoa neste verão que me pinta os cabelos -
ando na rua e toda a gente me olha como se fosse um estranho,
estou no meu bairro, no meu café, entre a minha gente, confesso,
mas as noites fazem-se quentes e da varanda só se vêem as luzes do hospital
ou uma outra traseira de edifício construído à revelia dos planos municipais.

há uma espécie de névoa neste acordar mais tarde que o costume -
o subsídio de férias rima com maços de tabaco e imperiais ao fim de tarde,
o miúdo a querer comprar todos os jogos de computador da tabacaria,
a mãe dele a telefonar de cinco em cinco minutos para saber se o príncipe está bem,
a televisão a repetir todos os jogados de futebol do ano passado.

há uma espécie de névoa na própria névoa desta vila à beira-mar
ou será o gonçalo m. tavares a descobrir uma nova língua portuguesa pela qual morrer
e matar, algumas proposições a rever num dicionário de velhos académicos.
as férias eram uma coisa que se fazia sentado à mesa do jantar, com as esposas,
mas agora são só uns calções às riscas pendurados entre o jornal e a kitchnet.

20.7.06

COLA

Ao acordar só se lembrava de lhe terem colado as unhas uma a uma, com todo o rigor. Unhas… A boca sabia-lhe àquela partezinha azeda das uvas quando começam a estragar-se. Uvas.
Procurou uma relação com um sonho anterior. Nele galgava sem sobressalto uma calçada portuguesa ladeada por dois muretes caiados de novo/há pouco, deixando para trás uma praça encolhida entre prédios decrépitos, cheia de carros de oficina com amigos lá dentro, um dos carros tossindo golfadas de cor antracite que se expandiam em nuvens translúcidas e o perseguiam calçada fora. Procurou aí.
Mas na sessão de psicoterapia o clínico desenganou-o firmemente: não tem nada a ver um sonho com o outro! Isso das unhas, à luz dos conhecimentos de psicologia actuais e até nova ordem, é muito simples: você, Raul, não se sente, ainda que no plano do subconsciente, com capacidade para agarrar a vida pelos cornos, se me permite o vernáculo. Unhas são garras, simbolizam a nossa competência em controlar o próprio percurso de vida, entende? Já a calçada portuguesa…
Desculpe, eu?! Eu não me sinto, tem a certeza?... Será por ontem à noitinha ter perdido a lata para me impor junto da senhoria quanto ao assunto da humidade no corredor? Hã, o que é que acha?
Ó Raul, a questão é o que é que você acha. Isto aqui não se joga com certezas, mas sim com interpretações dotadas de alguma flexibilidade, que ou fazem sentido ou não fazem. O que é que me diz?
O que me diz, pergunto eu, doutor. Eu sei lá. Nem é que me tenha doído, nem sequer foi por sensibilidade estética.. O que eu sei é que a visão das unhas coladas nas bordas das orelhas, cinco de cada lado alinhadinhas, compridas, parecia eu uma ave exótica, me deixou todo arrepiado, e subconsciente ou não ainda trago o cheiro da cola de sapateiro entranhado no nariz.

PRAIA CHEIA

Perguntou-lhe ele, na sua voz de flauta dos Andes sobre um fundo sonoro de fim de dia em praia vazia: “Se pudesse escolher, de que mais gostava neste momento?”
Era hora da baixa-mar num princípio de Outono e do Atlântico soprava um vento noroeste. Ela fitou o céu no ponto mais distante e depois fitou-o a ele surpreendida, quase incrédula, como se de repente lhe entreabrissem ao longe as portas do paraíso. Tentou avaliar o grau de proximidade entre ambos e daí apurar a legitimidade da resposta. Hesitou. O coração ameaçou-lhe a garganta, depois abandonou-a por instantes. A medo, com a coragem a acender e a apagar, a voz aos pulos lá dentro, mil vezes ponderando/pensando dizer e não dizer, aventurou-se num sussurro: “De sentir as suas mãos…”
Às primeiras sílabas julgou que se precipitava no vazio. Por milésimos de segundo quis fugir ao silêncio vertical que se criara. O movimento das ondas parou e um leve odor a algas, que ela perdeu, inundou o ar. Ouviu-o a ele inspirar com a surpresa e depois aquela voz de montanha, trazendo em si todo o tempo que há: “Pois o que eu mais quero neste momento é satisfazer esse seu desejo.”
A ela pareceu-lhe que a lua desorbitava de vez. Não havia ondas, não havia marés, apenas uma imensa massa de água quieta, expectante. Os olhos saltaram-lhe da areia felizes, olhos agradecidos. Uma parcela de tempo inmedível pairou nesse momento entre os dois, ampliou o olhar dele sobre o rosto dela, e voou depois para longe, arrastando sombras de sorrisos. Não ouviram o assobio do vento por entre uma fresta enorme nas sedimentares a sul da praia, nem lhes soou o guinchar das gaivotas na reconquista diária/tardia do areal deserto.
E ela com a breve sensação de que a alma lhe escapava quando as mãos objecto do seu desejo se aventuraram nas linhas do seu rosto, ao ritmo pausado de quem sabe que a vida se abraça por momentos: centímetro a centímetro, sinal a sinal, cantos dos olhos, testa, a linha direita do nariz, lábios, curva do queixo, o pescoço, talvez.
Uma mistura aromática de iodo do mar e perfume masculino perpassou-lhe cada célula, poeiras de luz (pareceu-lhe) iluminaram-lhe os sentidos enquanto demoradamente lhe beijou o interior do pulso, enquanto escutou um prazer difuso que invadia também o corpo dele, seduzindo-lhe o cérebro e o coração e devolvendo-se, zeloso, à superfície da pele.
Ao reabrirem os olhos havia muito menos luz ambiente e as ondas retomavam o barulho/marulho habitual.
Indiferentes ao bailado lento das mãos, à ondulação dos olhares dizendo tudo sem dizerem nada, ao beijo super-nova que incontrolável engoliu os contornos dos dois corpos, pilritos-maçaricos em bando saltitavam àquela hora à beira-mar.
E saltitaram até assistirem confusos a um sol que se reergueu de poente mergulhando a noite num amarelo líquido. E esvoaçaram assustados num espaço sem tempo, em praia vazia que já não era ali. Num tempo sem sentido único, num mundo que rodava ao contrário e que podia acabar assim.

19.7.06

O teu Rasputine (I)

Marta olhou em redor, nervosa. As pastas com os documentos repousavam alinhadas sobre a mesa, uma cópia para cada advogado, canetas, garrafas de água e copos, nada fora do lugar. A luz no tecto regulada para a intensidade certa. Nem forte, nem débil, certa, apenas. A palavra era de Malthus, o holandês que lhes caíra do céu e preparara o cenário favorável. Insistira muito nesta expressão.
Mas a meia-hora da reunião decisiva, ela não sabia bem o que pensar de tudo aquilo. Acreditara que Malthus podia salvá-la. Não, não era bem isso, pensava agora quase em pânico, olhando a sala à sua volta. Desesperada, na iminência de perder tudo, agarrara-se à ideia louca de Mariana para que contratassem Malthus. Via agora claramente toda a insanidade da situação. Se não conseguisse convencer o empresário americano a protelar o prazo de entrega do projecto, estaria acabada. E a poucos minutos desse encontro, não via como podia levá-lo a aceitar isso. Em breve não lhe restaria um tostão, tinha a certeza.
Ia sentar-se, desanimada, numa das cadeiras vazias, mas parou bruscamente. Em vez disso, como se fosse levada pelos próprios passos, foi até à porta que dava para a pequena sala contígua, bateu ao de leve e entrou. Malthus estava sentado no sofá negro, de olhos cerrados, como se meditasse. Com os estores corridos na janela, a sala estava mergulhada numa penumbra agradável, alheia à cidade que se agitava lá fora. Nesse momento, o holandês abriu os olhos e falou-lhe suavemente, como quem sossega uma criança assustada. “Vai correr tudo bem, garanto”.
As palavras pareceram ter um efeito mágico, porque ela distendeu-se e assentiu agradecida. Quase com ternura, olhou aquela figura estranha de cabelos cor de palha, espetados como palha, e pele branca agradável, que vestia jeans e t-shirt como qualquer jovem vulgar.
“Não é um jovem vulgar”, tinha dito Mariana. “Senta-lo na sala ao lado e vais ver, é a tua solução”. Sem argumentos, sem tempo para pensar noutra coisa qualquer, ela resignara-se. E agora, olhando o rosto tranquilo de Malthus, quase acreditava. “De qualquer modo não tenho outra hipótese”, pensou. Entregaria a Malthus, na sala ao lado, o desfecho da reunião. “Poder mental”, garantira-lhe a maluca da amiga, enumerando os sucessos do holandês. “Lembras-te da Disney e da Dreamworks? Malthus na sala ao lado. E a GM Petróleos e a Roadmap Stars? Malthus outra vez. Recordas-te da Enron? Malthus não estava lá. Ele é o teu Rasputine”. Mariana, melodramática.
A lembrança daquele fervor fê-la sorrir. Lançou então um aceno de confiança ao holandês e fechou a porta sem ruído. Dentro de minutos chegaria a delegação do americano. Precisava de passar o batôn nos lábios, acentuar um nadinha o desenho do sorriso.

O teu Rasputine (II)

Van Merchser, o americano, chegou à hora certa com um batalhão de jovens advogados vestidos de igual, igualmente silenciosos. A encenação dele. O cumprimento frio, um olhar rápido nos papéis, outro no relógio, o ar enfadado de quem quer terminar depressa uma obrigação maçadora.
Nesse momento Marta perdeu toda esperança e as lágrimas começaram a romper caminho num canto qualquer dentro de si. Teve que concentrar-se em reprimi-las.
Depois de semanas de telefonemas sem resposta, de faxes para cá e para lá, de pedidos insistentes, o americano trazia a decisão tomada. Malthus bem podia usar todo os seu poder mental na sala ao lado, estava tudo acabado. Agora ela já só queria abafar as malditas lágrimas.
Foi no meio dessa mistura confusa de medo e de raiva que ouviu a voz estranhamente suave do americano. “Não se preocupe, o projecto é bom, esperamos”. Depois caiu um silêncio longo, longo na sala, que parecia não acabar mais.
Quando compreendeu que Van Mercher estava ali, afinal, a dar-lhe a mão, Marta quis beijá-lo, agarrar-se a ele, gritar-lhe obrigada, quis chorar. Mas em vez disso, concentrou-se em reprimir as lágrimas. A imagem do jovem de cabelo cor de palha sentado no sofá negro, na sala contígua, emergiu nítida no seu espírito e as palavras vieram atrás, “meu grande sacana, conseguiste”.
Sentada a seu lado, Mariana dominou-se primeiro. Mulher de leis habituada a emoções, foi ela quem quebrou o silêncio. “Terá o projecto dentro de duas semanas na sua secretária”, disse, muito profissional, muito competente. Depois o Van Mercher saiu, e com ele o batalhão ordeiro dos advogados. Sozinhas, elas abraçaram-se e riram.
“Eu não te dizia, não te dizia, mulher de pouca fé”, gritava Mariana. Entusiasmadas, correram para a outra sala, chamando pelo holandês. Iriam festejar os três, beber umas cervejas no Rapsódia, rir alto até tarde. Lá dentro, mergulhado na penumbra, afundado no sofá negro, Malthus esfregava os olhos e olhava-as como se estivesse meio estremunhado. “Estou pronto, vamos lá a isto”, disse no seu português meio cómico, carregado de erres, enquanto se espreguiçava, muito discretamente.

18.7.06

Tinha dificuldade em escrever versos sobre o preço do petróleo.
Diziam-lhe que não era para isso que servia a poesia e, no entanto, ele insistia. Rascunhava, esborratava, nódoas de tinta permanente na camisola
(ainda escrevia com caneta de aparo e mata-borrão. Obsoleto portanto).
Que a poesia tem a ver com a vida e a vida com o petróleo, argumentava ele.
Os amigos, condoídos, diziam-lhe que não e falavam-lhe de passeios à beira-mar e outros temas que o ajudassem a engatar raparigas, que era o que ele precisava (afirmavam eles).
Mas o poeta perseverava e um dia, ao acordar, escreveu sem um pingo no papel almaço de linhas azuis uma página perfeita onde nem a rima faltava.
O poema, depois de divulgado, mereceu-lhe um Prémio Nobel pela paz que levou ao Médio Oriente. E as raparigas foram mais que muitas, para inveja dos amigos.

17.7.06

lição de piano

porque de tanta vontade de soletrar palavras aos ouvidos dos outros
eu sento-me agora no chão da sala, com tanto calor na testa suada,
e vejo como é ténue a linha que nos separa das mulheres que existem nos livros
quando nos deixamos levar pelos sonhos de noites inteiras dentro de casa.
porque te tantas vezes repetidos os mesmos nomes no silêncio
eu agora já sei como se faz o pino e a cambalhota sem sair do mesmo lugar,
compro a comida do peixe e alimento-o quotidianamente
levo a minha vida pelos dias como alguém me pede licença para passar.
porque de tantos dias queimados nos cigarros que apaguei neste cinzeiro
o tom da minha pele mudou, tu ficaste junto a porta da tua casa,
e uma vizinha tua ainda foi contar lá no bairro qualquer boato inventado
por o meu carro ser desconhecido e tu viveres sozinha há pouco tempo.
porque de tanta vontade de soletrar palavras aos ouvidos dos outros
eu sento-me agora no chão da sala, com tanto calor na testa suada,
e vejo como o tempo passa cada vez mais dentro de si próprio
sem respostas, sem explicações, sem prazeres, mas sem mágoas.

16.7.06

Olhos Revoltos

Do sol, no acaso um raio derradeiro,
Que, apenas fulge, morre
escapa à nuvem que, apressada e espessa
para apagá-lo, corre

Alexandre Herculano



Lembro-me de pormenores curtos de gente a passar por mim
( enquanto eu na cama de manhã)
- eu antes de sair de casa

aprendi a masturbar—me sozinha com nove anos de idade; eu entre a parede da sala e a cozinha onde os meus pais discutiam gritos
- eu sempre fui tão sozinha

sempre a gostar de me deitar cedo, de olhar para o tecto do meu quarto num sorriso de líquido doce colado às pontas dos dedos enquanto sabia de vida a acontecer-me no meio das pernas;

eu a pensar que a carne das batatas do almoço não tinha motivo para dizer o que disse,

o que disse quando nos olhámos no prato pela última vez
(no meio da alface, perto do arroz)
- tenho tanta pena de ti, querida


talvez o tenho dito no desespero da morte para me castigar
- eu sempre odiei que me tivessem pena

matei a carne do almoço com a força dos meus dentes de trás.

Não parei de pensar no dia quente que estava a fazer, nos trabalhos que a professora mandou e na possibilidade de chegar à minha cama, depois do banho, para me poder ter com os dedos
- eu sempre me quis ter mais do que os outros me tinham

não parei de pensar no problema da aula de matemática, no meu cão: pensar em mudar a água aos pássaros, nos brinquedos espalhados na sala que devia ter arrumado quando me mandaram

- eu sempre fui obediente antes de viver de mim e dos meus dedos


apenas nunca percebi porque em mim tudo durava tão pouco.

15.7.06

Prazeres Minúsculos, Grandes Descobertas

Um frio de morte

Extraordinariamente escarlate, com a pele do tom da paprika madura, Támas Fafej deu um murro na mesa, fazendo tremer o candeeiro de petróleo que iluminava a taberna. Só então, os três camponeses, todos bastante bebidos, prestaram verdadeira atenção à pausa que o seu companheiro fizera, o tomar de fôlego antes de um discurso importante:
“Foi assim mesmo que aconteceu!”, exclamou Fafej, criando um silêncio teatral, que as badaladas das onze, vindas da torre da igreja, tornaram ainda mais dramático.
“Vocês, os jovens”, e a voz de ébrio era acentuada pela expressão de desprezo, “não sabem o que foi a guerra e o que lá sofremos”.
Aquilo era de súbito mais credível. Fafej tinha fama de cabeçudo, de homem amargo e quezilento, que dava pontapés nos cães que passavam e insultava os trabalhadores que iam para a faina. Nunca tirava o chapéu quando passava o conde Termekenyi, o proprietário da aldeia. Fafej era um trabalhador dos mais pobres, a mulher cansara-se das pancadas que levava e abandonara-o. Por isso, ele vivia sozinho, sem ninguém com quem falar, cada vez mais furioso com a vida alegre dos outros.
E, agora, pela primeira vez, aqueles rapazes joviais, que não sabiam nada do mundo, começavam a acreditar na história que ele lhes contara, de como fora feito prisioneiro durante a ofensiva Brusilov e levado com metade do seu batalhão para o interior da Rússia, onde ficara prisioneiro durante dois anos. Era inverno, ao estalar a revolução em Petrogrado. Os prisioneiros austro-húngaros tinham sido reunidos numa aldeia perto do caminho de ferro transiberiano e, um dia, vieram as tropas brancas e levaram muitos novos recrutas. Um deles era Fafej.
“A imensa distância”, disse Fafej, a babar-se, pensativo. Engoliu mais palinka, como se precisasse de fogo para soltar a língua. “O rapaz chamava-se Pavlik e era meu amigo”. Na névoa do álcool, lembrou-se que nunca percebera aquela amizade. Era um rapazinho imberbe e magro, que mal sabia carregar a espingarda. Espero que não sejam fuzilados, dissera Pavlik, uma vez, para o confortar. Os guardas brancos encostavam-se à parede (estavam presos num mosteiro de pedra grossa) e desesperavam da sua sorte, temendo o interrogatório dos vermelhos; Fafej era o único húngaro sobrevivente, mal arranhava o russo, e Pavlik, que mal sabia pegar na espingarda, jurava que seria uma pena se ele fosse fuzilado...
“Pavlik era meu amigo, mas tinham-lhe dado uma ordem”. Fafej parou de novo, como se procurasse as palavras certas. E a memória buscava os rastos do que acontecera 15 anos antes, apesar da palinka fazer oscilar o mundo e, com ele, a fraca chama do candeeiro de petróleo, a largar sombras na parede vazia.
“Fomos até à orla da floresta, onde Pavlik deveria escolher um sítio bom para me fuzilar. Os comunistas não tinham munições e muitos brancos foram mortos à pancada. Eu tinha sorte, porque uma bala é mais rápido”.
Os dois camponeses e o forasteiro tinham mergulhado num silêncio alarmado, sabendo que o álcool nunca mente. Bebiam cada palavra.
“Pavlik apontou-me a arma e eu disse-lhe que éramos amigos. Não vais disparar, disse eu. Virei-lhe as costas e caminhei para a floresta, muito devagarinho. E ele gritou, pára ou disparo, e eu continuei, sentindo nas minhas costas o terrível frio do cano da espingarda, a gelada bala que me iria tirar a vida. O frio de morte. E aquela espera durou uma eternidade”.
Fafej ergueu-se e disse de súbito, triunfante, a voz arrastada:
“Continuei a caminhar e estava entre as árvores. Depois, caminhei sempre, até encontrar um comboio. Demorei seis meses a andar cinco mil quilómetros. E, agora, todas as noites sinto ainda aquele frio nas minhas costas. Por isso bebo.”
Fafej era um homem enorme e cambaleou, como uma árvore partida, na direcção da porta. Fora da taberna, acumulara-se neve e assobiava o vento forte. O camponês distinguiu na escuridão a vaga sombra da torre da igreja e avançou pela rua. Estava cansado e confuso. Cantarolou uma cançoneta russa que aprendera, mas o efeito da palinka começou a dissipar-se e uma facada de frio entrou-lhe pelo casaco. Era uma noite de tempestade e gelo. As casas eram vultos que se erguiam como fantasmas e o caminho turvara-se. Então, nas suas costas, ouviu a voz trémula: “Pára ou disparo”. E o frio da morte tocou de novo nas costas de Fafej, num único ponto, o do medo e de uma fúria que se dissipava, pois que o mundo oscilava à sua volta, embora só ali houvesse a ríspida voz do vento e os múltiplos fantasmas das suas angústias, soltando-se como animais na puszta, a erguerem com as suas patas endiabradas uma poalha de geada que o envolvia, protectora.
Invadido por um imenso medo, por uma desistência repentina, Fafej ficou parado naquele caminho sem saída. Talvez cinco minutos de pé, num terror solitário: e o ponto gelado crescia nas suas costas e Pavlik da noite repetia a ordem e, então, como uma árvore abatida, Fafej caiu na cama de neve e adormeceu.

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13.7.06

Cartas de Eva na cidade

Um cérebro cansado a ouvir em repetição a mesma frase mil vezes
- prostitutas macaenses a ligarem de noite para minha casa, a acordarem a minha mãe para falarem com o meu pai; o meu pai só sabia não estar
( o meu pai nunca esteve.)

(porquê, pai? porquê?)

eu a imaginar o teu inglês no telefone com elas a rirem, o inglês de uma criança tímida e baixa que não chegava ao móvel do telefone da sala; o teu inglês a desculpar o teu pai pela ausência
(o teu inglês sem imaginar, o teu inglês sem saber)
a tua mãe do quarto: quem é? Quem? Quem fala?


Eu a olhar-te.


(...) agora diz-me, por favor diz-me, que se eu tomar banho e me lavar bem as putas macaenses se vão embora da minha cabeça e eu vou poder sair disto;
diz-me que se eu me lavar bem atrás da orelha, entre os dedos dos pés, se eu souber esfregar mesmo bem as minhas pernas:

jura-me aqui que se eu comer a sopa toda e se deixar que me penteiem sem chorar

a minha mãe,
(a
minha mãe também nunca soube de nada)

jura-me que a minha mãe não me vai mandar com o meu pai e eu não vou ficar fechada com ele de noite, com ele de noite a tocar-me entre as pernas
(eu e as minhas pernas: tínhamos as três cinco anos)

diz-me que não vou vomitar agora porque cada vez que em lembro disto não me apetece chorar, apetece-me foder e vomitar ; não me apetece chorar
(eu nunca fui muito de chorar)

um dia jura-me que isto passa: um dia juro-te que vais ser feliz.

8.7.06

letra para canção de aniversário

quando no placard estiver quatro quatro
podes-me dizer que o sonho é
possível outra vez e sempre

quando no placard estiver quatro quatro
podes sorrir e à tua volta
vamos estar sempre nós

e depois abre os braços
e colhe do ar
os segredos da terra
a voz da poesia
os beijos do mar

quando no placard estiver quatro quatro
fecha os teus olhos e revê
o mundo inteiro na tua vida

quando no placard estiver quatro quatro
não largues a pele de sonhador,
está tudo a começar

está tudo por fazer
os segredos da terra
a voz da poesia
os beijos de sonhar
apanha-os do ar
em ti.

[para o meu amigo Ozias, no dia do seu quadragésimo quarto aniversário, 6 de Julho de 2006]

6.7.06

todas as pessoas sozinhas

todas as pessoas sozinhas dançam devagar na sala de espera
mesmo que o dia seja quente e convide a passeios ao luar.
a música é sempre a mesma, assobiada ao ouvido
por um rapazinho tímido e fechado do qual não se sabe o nome
e a destreza que podemos alcançar, neste querer dar o passo certo,
é apenas uma mínima ideia da força dos nossos desejos.

todas as pessoas sozinhas sorriem em frente ao espelho
e lavam os dentes como quem arranca beijos à emoção
de ter ali, à nossa frente, alguém de quem gostamos muito.
a porta da rua é um lugar por onde só se sai,
a nossa família é uma fotografia pendurada na parede
e os amigos são aqueles que nos dão bons dias no café.

todas as pessoas sozinhas gritam baixinho os nomes esquecidos
que outras pessoas sozinhas lhes sussurraram alto uma vez,
quando ainda éramos todos uns dos outros.
engomada a camisa, vestimo-nos com o cuidado solene
daqueles que vestem camisas com emoção e significado
enquanto esperam a hora certa para morrer ou nascer.

todas as pessoas sozinhas todas as pessoas sozinhas
embrulhadas em lençóis frescos porque é verão
a rebolar as dores de pescoço pelas duas almofadas da cama
e a pensar que de tanto dormir assim sem ninguém
vai ser difícil voltar a adormecer só num dos cantos do colchão.
todas as pessoas sozinhas todas as pessoas sozinhas.

4.7.06

Maestro de pássaros

A música começou a subir, a subir, encheu a sala e desfez-se num estrondo de percussões e metais agudos. Fiquei pregada à cadeira, minúscula na sala imensa, esmagada pela força daquilo tudo. Nunca tinha ouvido nada assim. Respirei fundo, a recompor-me, e olhei para o Jorge ao meu lado, num agradecimento mudo. Mas foi nesse momento, quando o homem-pássaro se preparava para entrar, foi nesse momento em que olhei para o Jorge, quase a apaixonar-me por ele, que tudo começou a correr a mal.
A cortina devia ter subido. À melodia nos violinos, seguiam-se as flautas e os oboés, logo depois o cacarejo pá-pá-pá-pá...Conhecia aquilo de cor. O Jorge tinha-me obrigado ouvir os discos semanas a fio, para a minha estreia na ópera, dizia ele. Íamos os dois à ópera e ele tinha tanto para me ensinar. Queria mostrar-me tudo. Esta versão do Krauss, tens de ouvir esta, insistia. Olha o veludo na voz, repara na doçura dos metais, os violinos a deslizar pela música. Um espectáculo, apontava a cada passo, impedindo-me de ouvir. Era preciso pôr o disco outra vez, repassar violinos e flautas, o canto dos violoncelos e das vozes, tudo misturado. Tão bem misturado.
Agora, sentada na sala cheia de dourados, antecipava cada momento, sabia dos violinos, das flautas e dos oboés. Do pá-pá-pá-pá... Foi por isso que o estrondo súbito, para lá da cortina cerrada, me soou a desastre.
Invisíveis no fosso, os violinos foram-se calando, as notas morrendo, desencontradas. Uma flauta solitária ainda entrou desfasada, mas extinguiu-se, sem ânimo. A cortina pesada no palco agitou-se por momentos e as luzes acenderam-se na sala, ao mesmo tempo que um murmúrio crescente se elevava na plateia, nos camarotes, cabeças voltando-se numa interrogação agitada. Olhei outra vez para o Jorge, certa de uma desgraça. A minha, a nossa, estreia na ópera. Uma desgraça.
E era. Soube-se quando um homenzinho saiu detrás da cortina e, absurdo no seu fato escuro e laço encarnado, contou num fio de voz que o homem-pássaro, mal atado nas cordas, tombara sobre o cenário atrás do pano. Tinha uma perna fracturada. Pediam muita desculpa, eram obrigados a cancelar o espectáculo. O dinheiro seria devolvido, era favor dirigirem-se às bilheteiras.
Saímos atordoados para o largo fronteiro à Casa da Ópera. Uma destas, dizia o Jorge inconsolável. E logo hoje, a tua primeira vez, não dá para acreditar. Eu também estava decepcionada. Pensava no cantor com a perna quebrada e arrepiava-me a ironia daquela queda de homem-pássaro. Uma multidão cabisbaixa saía do edifício, escoava-se lentamente pelas pequenas ruas laterais e sumia-se na cidade, que o sol banhava ainda, generoso, nesse fim de tarde de Verão.
No largo, restavam apenas um enorme bando de pombos, passeando-se tranquilos sobre as lajes brancas, debicando o chão, e nós dois, desamparados, aturdidos no meios deles, sem planos para a noite que acabara cedo demais. Quis consolar o Jorge. Mas, de rosto fechado, alheio a tudo, ele parecia entregue a maus agouros. Soube que as palavras seriam inúteis.
Olhei em volta, à procura de uma ideia, um apoio, mas só via os prédios sisudos com as janelas adormecidas, e os pombos que arrulhavam por ali, ao acaso. Foi então que um homem estranho, de cabeleira grisalha brilhante e fato colorido, surgiu no largo, vindo de uma ruazinha lateral, e avançou na nossa direcção a passo firme.
Por um momento pensei que fosse dizer qualquer coisa, mas nem olhou para nós. Em vez disso, parou junto dos pombos e, num movimento súbito, mas elegante e poderoso, elevou os braços como um maestro. E talvez fosse, porque os pombos subiram no ar, num fragor de asas, e ficaram ali a voltear, enquanto ele agitava as mãos e com isso lançava o bando numa direcção, para em seguida lhe impor um looping, um voo picado, e mais uma volta. Aquilo durou apenas uns minutos. Depois o homem baixou os braços, as aves pousaram no empedrado e ele, sem uma palavra, sem uma vénia, foi-se embora.
Incrédula, toquei no braço do Jorge. Viste aquilo, perguntei. Ele encarou-me pesaroso, assentiu. A tua primeira vez, não dá para acreditar repetiu ainda.
Foi ali que tudo terminou. Sem pensar muito, murmurei qualquer coisa, despedi-me à pressa e fui-me embora. Nunca mais vi o Jorge, nem o homem dos pássaros. Mas voltei muitas vezes ao largo. Os pombos continuam por lá. Arrulham, debicam as lajes ao acaso e, de vez em quando, voam.