27.6.06

certas coisas pertencem aos livros de poesia

certas coisas pertencem aos livros de poesia.
a lâmina com que cortei a face esta manhã,
o álcool com que a estanquei, a tua voz perdida
na minha cabeça e em toda a parte,
a minha camisa suja caída no chão do quarto,
o cheiro a sexo impregnado nas minhas mãos,
listas e listas de compras de uma casa desordenada,
um telefonema em que se fala das coisas mais banais,
uma série de livros amontoados sobre a mesa da cozinha,
os teus iogurtes preferidos no frigorífico,
a tua mão que agora não vive em mim,
apertar a garganta antes de adormecer.
certas coisas pertencem aos livros de poesia.

24.6.06

estação

seria capaz de esperar por ti junto à estação do comboio um dia inteiro
sabendo que chegarias por fim à tarde com um sorriso pequeno e doce
uma mala pendurada às costas, desajeitada, e os cabelos a provar
o vento forte desta cidade esquecida pelos abraços do divino.
seria capaz de esperar por ti, aliás, não o saberia fazer de outro modo
movido pela ansiedade que se alinharia na minha garganta
em impressionante expansão por todo o meu corpo e pela cabeça.
depois pousarias a mala no chão sujo da estação e estenderias os braços
para mim - existem abraços tão lindos como cúpulas de igrejas,
beijos mais significativos para a história da humanidade que países inteiros.
passearíamos de mão dada pela cidade, só para perceber como está morta,
e só de sombras são feitos estes edifícios novos construídos sobre destroços
onde nem as pessoas se deram ao trabalho de guardar memórias, ou algo que contar.
passearíamos de mão dada sozinhos, imunes a tudo isso, porque nas nossas
mãos, na minha e na tua juntas, está muito mais do que aquilo que eu possa dizer,
está uma forma de voar por onde nem avionetas nem foguetões se arriscam.
seria assim, sim, um dia, depois de combinarmos, eu à tua espera, na estação.

23.6.06

Vou dizer nada.
Nada pode ser dito.
Uma palavra bem guardada
é um segredo tão bonito.

Aprender a calar,
a deixar de pensar.
Entrar dentro de mim
e deixar-me estar assim

como um jardim
como um jardim
como um jardim
como um jardim.

19.6.06

qualquer coisa que não um poema

esfrega os teus olhos no meu peito, podes passar a acreditar que tudo vai acontecer
a partir deste gesto minúsculo que é uma chávena de café a sair do seu pires
e a encontrar os teus lábios, tudo teleguiado pela tua mão de dedos finos.
recusa determinantemente as coisas que se te oferecem já feitas e refeitas
não é para isso que entraste na sala dos encontros imediatos com a liberdade
dos sentidos que é ser-se bonita como tu és, inteligente como tu és, apaixonante como só tu és.
vem à janela, nem que seja agora a última vez que o faças por mim ou para mim,
e entretém-te com os disparates que eu digo daqui de baixo, do primeiro andar,
ao mesmo tempo que vou deixando cair a cinza do cigarro em cima da roupa lavada.
vem ao meu encontro, tantas vezes isso foi apenas mais um desencontro,
mas agora que é a sério, que é de vez, vem e vem sem medo, toca à campaínha,
trás flores bonitas para me animares o corredor e dar um cheiro diferente à minha solidão.
eu continuo a ser de cá, destes lados onde se pede a alguém, com muito jeitinho,
para esfregar os olhos no meu peito, para passar a acreditar em tudo,
possível e certo numa data futura a combinar com os elementos da gerência,
esse tipo de negociação impossível de falhar porque é o destino, são as palavras
é o corpo todo ou ainda mais qualquer coisa da qual agora me vou esquecendo
quem garante que tudo se realizará como o combinado. era isto o que havia para dizer.
podes vir.

17.6.06

Àtàlaià

O pior era o silêncio que saía das casas e assentava no chão terroso. Aquele monte de pedras escuras, de portas cerradas e buracos a fazer de janelas, estava deserto. “Raios, até os bichos se foram”, pensou Pierre Lotie, enquanto avançava, cheio de cautelas, com os dois companheiros do reconhecimento até ao centro da aldeia abandonada.
Repetia-se a cena do dia anterior, naquele lugarejo sujo de nome impronunciável. “àtaléiià”, "tàleià", ou lá o que era aquela palavra do diabo. Depois de uma marcha dura por caminhos cobertos de um pó fino e esbranquiçado, arrastando canhões e artilharias menores, carroças e mulas, tinham chegado àquele sítio de mau agouro, quando o sol já descia no horizonte. A aldeia estava deserta e era sinistra. Todos tinham fugido horas antes de ali chegarem. Era o que lhes parecera, pelo menos. Destacados para passar as casas a pente fino, Saul, Jean e François acabariam por cair às mãos do punhado de desgraçados que se tinham acoitado nas casas, armados de paus e forquilhas e de um mosquete meio rombo. A coisa tinha terminado logo a seguir, com os aldeões passados à espada, mas o caso beliscara o moral da tropa. Afinal aquilo era um bando de maltrapilhos sem chão onde caíssem mortos mas tinham eliminado três soldados a Masséna. Para tranquilizar os homens, o general discursou no enterro dos companheiros, que ficariam para sempre em solo estrangeiro, paz à sua alma no céu. E logo a seguir, garboso e arrogante sobre o seu cavalo, incentivara as tropas, com urros de vitória.
Agora, no calor sufocante da tarde, a farda pesada e coberta de pó, atormentava-o. Mas sobretudo tornava-o um alvo demasiado visível. Se algum daqueles desgraçados se tivesse emboscado, seria um homem morto. Mas aquele foi só um pensamento fugidio. Sentiu os nervos tensos e apertou a arma com mais força, enquanto olhava em volta, sentidos alerta. Não havia movimento, nenhum som. Nada. Nada, a não ser a bica de água no centro do terreiro a pingar, insistente, e um estendal um pouco mais longe, com meia dúzia de trapos já tesos de secos. Junto a uma das casas, um banco tosco de madeira, estava tombado de lado, deixado assim, talvez, na pressa da fuga. Pierre decidiu não esperar mais.
Enfiou a baioneta na ponta do mosquete, fez sinal aos companheiros e avançou, levado pela raiva, pelos nervos e pelo medo. Dispararia ao mais leve movimento, ao mínimo som.
A porta de madeira cedeu ao primeiro pontapé e Pierre precipitou-se no buraco negro que se abria à sua frente. “Jésus, bon Jésus, soit près de moi mon Jésus”. O murmúrio soltava-se-lhe dos lábios frenético, hipnótico, na esperança talvez de que a prece pudesse acender uma luz no interior daquela negrume angustiante. Por isso, ou porque os seus olhos se tivesse habituado à falta de luz, uma espécie de obscuridade deixava agora ver os contornos difusos de uma mesa à sua frente, um catre ao fundo, tudo envolto num cheiro intenso a lume frio e a sopa.
Um leve gemido, como um miado triste, soou então no canto mais afastado da casa. Pierre deu um salto e gritou: “Qui est là?”. Vendo melhor agora, agarrou a arma pronto a disparar e correu para o sítio de onde vinha aquele som que não conseguia identificar. Seria um animal moribundo? Ou um homem fingindo-se ferido e prestes a saltar-lhe em cima para o degolar?
A surpresa gelou-o. Estendida no sobrado, coberta por um largo farrapo, uma mulher jazia deitada com os olhos muito abertos, em silêncio. E a seu lado, embrulhado numa manta, protegido num abraço, um recém-nascido sorvia a vida, sôfrego, agarrado ao peito da mãe.
Durante um, dois, cinco, seis segundos, Pierre não se moveu, de arma apontada ao peito da mulher. Sentiu um formigueiro nas mãos e as gotas de suor na testa rolaram enfim numa carícia de cócegas e toldaram-lhe os olhos. Então, Pierre baixou a arma, passou a manga suja na cara, pôs o indicador sobre os lábios e soprou ao de leve, num aviso quase terno. Depois saiu para luz do dia e juntou-se aos companheiros no terreiro. “Rien”, gritou. “On peut passer”.

Setenta e quatro

A Parede nunca foi um bom prenúncio. Alguém ligou ontem de noite
- eram 5 da manhã quando o telefone tocou

para dizer que morreste na madrugada e eu tão fiquei feliz por não existires mais.


Procura-me agora só com os dedos das mãos no escuro: os teus dedos feitos de geribérias frias sem sangue a passearem as pétalas orvalhadas no meu corpo, nas minhas costas que as aceitam e as querem por parte
- diz que não vais fugir agora que te encontrei, agora que me achaste porque os aeroportos a mim sempre me deram lágrimas nos olhos, que descendo, me mutilam e cortam a pele
(o rosto bonito cor de luz)


se eu fechar agora os olhos com força e fingir que nada aconteceu posso sentir na ausência do meu corpo, o voo do pássaro grande, do pássaro pesado e desgovernado que tomba o corpo sem postura rumo à terra que desconhece:
há um pássaro grande que rasga o céu desesperado pela orientação, uma qualquer orientação celeste que lhe tire as dores das asas nuas do tamanho da montanha
- queria contar-te que conheço as montanhas de Goba e que quando lhe conheci o topo pensei em nós a dançar nus num jardim de velhos

ontem quando me falaste, ia dizer que te amo sem saber porquê.
Sei que se te oferecer o meu corpo morreremos os dois pelo peso do incesto:
-somos gémeos cá dentro

mas explica-me porque é que a vida na padaria só se efectiva quando eu lá entro, explica-me como é que os livros do meu quarto falam à noite quando tudo se cala e eu durmo
(os livros a falarem com os sapatos, com os vestidos, com os soutiens do armário:
falam todos tanto quando tudo dorme e eu nua a fingir o sono, a fingir não ouvir
)

explica-me o som das mãos e dos braços da Dor a bater nos vidros do carro com força quando o ouviu travar, e se aproximou, ávida, no momento em que os semáforos fecharam e ganharam o vermelho do sangue:
explica-me porque é que ela me escolheu a mim, em desespero, para me despir
- a Dor a violar-me com toda a gente a ver

Eu só a vi naquele dia: depois disso nunca mais andei de carro.
Não contei a ninguém mas a Dor é uma mulher de meia idade, loura, alta, de vestido preto secreto sentada a aguardar-me na curva dos semáforos:
a Dor a rasgar-me a roupa no carro, a dizer-me ao ouvido que tu só existes se eu deixar.

Eu não vou deixar porque alguém ligou para minha casa esta noite a dizer que morreste na madrugada: eu fiquei tão feliz por não existires mais.

A Parede nunca foi um bom prenúncio

Contos do Mundial (IV) Bobeei e dancei (primeira parte)

1. E logo o moleque decidiu nascer no dia da final da Copa do Mundo. Eu preparara um rádio de bolso para ouvir o relato falado, quando apareceu na ladeira a santinha da dona Ermelinda, dizendo, seu Florindo, o estão chamando lá na maternidade do doutor Rubem Fonseca, porque o neném está nascendo.
Puta sorte, exactamente naquela hora, em que o Brasil descia no gramado.

A referida maternidade fica no limite da zona sul, é preciso tomar ônibus. Me meti à estrada, a pensar em como seria a esplendorosa final, quero dizer, mas também me preocupava com a Mônica, minha mulher, uma mulata braba e cheirosa, que amo muito, embora a meu jeito.

Naquela altura, eu escrevia novela romântica para uma editora de livro popular, das de dois cruzeiros. Estava bolando uma história de herdeira apaixonada por cara caipira, assim como eu, um moço enxuto e fogoso, dentuça grande e bigode à Rivelino.
Eu tinha saudade da Mônica, que a minha sogra nessa manhã levara para a maternidade, pegando carona do siô Inácio, que tem um táxi lá na favela. A criança deveria nascer no dia seguinte, só no dia seguinte, mas se antecipou, feito ponta-de-lança. Catástrofe para mim! Dona Ermelinda me deu a bruta notícia, mas notícia deve ter sempre hora adequada, não deve ser coisa extemporânea (O leitor se interroga com esta extemporaneidade, mas convém meter de vez em quando uma palavra mais grossa e de belo efeito).

Saí do ônibus na ladeira de Santa Engrácia, a um quilómetro, ou mais, da maternidade, porque vi um botequim aberto onde se reunira uma agitada multidão de torcedores. Por isso desci. Havia um televisor, com um esplêndido preto e branco, que me permitia ver quanto apertado era o terreno de jogo. Os brasileiros corriam pelo campo fora, pareciam ter asas; os italianos eram circunspectos e ferozes, mas semelhantes a bicho caçado e sem rota de fuga. A turma no botequim lembrava congresso de catatua, olhando um só ponto da floresta e meditando, com subtileza, nas agruras da vida.

Contos do Mundial (IV) Bobeei e dancei (segunda parte)

2.Foi nessa altura que o Brasil marcou o primeiro gol. Indescritível, pois eu tinha desviado o olhar por alguns segundos, fixado na peituda que estava a meu lado. Me distraí com tanta opulência, perdendo a ginga, o chute e o delírio na arquibancada. Valeu que a mulher também deu uns pulos e, num instante apenas, tive a percepção nítida do que significa a força gravitacional nas esferas celestes. Coisa gostosa.
Marcara Pelé e pensei que talvez seria um bom nome para colocar no menino que me esperava na maternidade, certamente ansioso por conhecer seu progenitor. Só precisava de convencer a Mônica e a grã-fina da mãe dela, com seus dois filhos bandidos. Juro que é verdade, os dois meio-irmãos mais novos de Mônica são bandido de verdade, procurados pela polícia.

Corri do botequim, ouvindo nos varandins os gritos enlouquecidos dos torcedores. Estava sem grana e não podia tomar de novo o ônibus, corri como um alucinado, rumo à vitória, sentindo a força do vento, a leveza dos meus pés, o estrilho do segundo gol brasileiro, num delírio explodido, num grito em uníssono, como se todo o mundo fosse irmão.

Depois, no rádio de bolso que se colara ao meu ouvido, soube da ansiedade do contra-ataque, do italiano malvado se aproximando da baliza de Gerson, a bola em arco espairecendo perigosamente perto do alvo e o goleiro se esticando numa única palavra arrepiada, e bateu para escanteio. Eu estava sem fôlego quando cheguei à maternidade doutor Rubem Fonseca, no limiar da zona sul.

Contos do Mundial (IV): Bobeei e dancei (terceira parte e final)

3. Subi até à enfermaria e lá estava a Mônica e o neném, um morceguinho engelhado, de olhinho fechado e uma ternura de mão. A equipa médica, feliz, o rádio de bolso a debitar correrias na minha orelha. Peguei no frágil pacotinho, uma delicada porcelana. De repente, aquele gol, sambado até à felicidade. Rivelino passou a Jairzinho, Jairzinho meteu em Pelé, que dançou em frente ao zagueiro italiano, que parecia árvore plantada ou espantalho fixo no gramado, e mete em Julinho, que dispara a gol, feito vulcão explodindo ou orgasmo fodido.
Goooool.

Não sei como fiz aquilo. Estava ouvindo pela rádio e as minhas mãos seguravam o neném, os braços envolviam aquela pequena bola mágica, que saiu voando, direito ao tecto, eu gritando, parecendo louco, gooooll, lembro-me de ver a expressão de pânico das enfermeiras, da minha sogra, do médico que tinha um físico de armário. Foi um pandemónio, candomblé pé-ante-pé, o menino voando em câmara lenta na direcção do tecto da enfermaria e o médico saltando, feito goleiro italiano, e a bola já descia em arco, o doutor se estirando na atmosfera, estetoscópio pendurado e a bata branca parecendo nuvem, e pegou o menino na via descendente, se estoirou no chão, amparando no vasto amplexo o pobre do pimpolho.

Virei árbitro enfrentando torcida zangada. Mônica permanecia lívida, quase desmaiada, Recuperara num instante do seu estado bovino e ensonado e me encarava, incrédula. E eu pensei assim: bobeei, dancei.
Me queriam pegar, estraçalhar. Era cabra marcado para morrer. Minha sogra me rogou uma praga horrível e prometeu lançar seus dois filhos bandidos procurados para me cortarem as jóias da família, tipo trofeu.

O meu minino se machucou, chorou Mônica. Eu disse que nunca chegara a bater no tecto. Terá roçado a centímetros. O médico estudava a moleirinha do neném, não sofreu nada, dona Mônica, percebi que tinha sido tempestade em copo de água.
Mônica me largou outra praga. Era braba, a mulata. Depois, me expulsaram do hospital doutor Rubem Fonseca, pelo que tive pela primeira vez a sensação do jogador que leva vermelho.

Mas, enfim, o Brasil ganhara e a emoção foi passando, como fim de carnaval. O samba se acabara. Mônica me proibiu de abrir a boca e me expulsou de casa. Foi ela quem convenceu os meio-irmãos a não me retalharem, para não deixarem órfão o probrezinho do pequeno. Temi que tivesse acabado o tempo bacana, mas ela acabou por me perdoar. Há um filósofo alemão que fala no eterno retorno e penso que sei o que é isso. Um conceito simples, no fundo. Passaram três meses de castigo. Estava chovendo e eu fora de casa. Pus a cara na vidraça e olhei para dentro, como cachorro abandonado. E Mônica se compadeceu. Abriu a porta. Me abraçou. É sempre assim, é isso o eterno retorno, o final de cada uma das nossas brigas.

semanário

esta semana comecei um poema que fala de chuva e despedidas
chávenas de chá e borras de café, olhares quentes e polícias
e girassóis e livros e comboios e telefonemas com três palavras
e versos e poemas e músicas e abraços e insistências várias.
esta semana comprei uma máquina de fazer olhares sensuais
e despi o meu casaco de senhor doutor para te dar as boas noites
e peguei num boné que era do meu avô e gritei golo algumas vezes
e fui ver o sol nascer no mar do lado de lá do lado de lá de mim.
esta semana encontrei-te na rua e disse-te adeus em duas ocasiões
dancei desajeitado no corredor da minha casa desarrumada
lavei os dentes catorze vezes e tomei banho outras sete
dormi sempre pouco e sempre mal com calor e dores de garganta.
esta semana pensei que podíamos ficar apaixonados para sempre
a música que eu ouvi na rádio poderia repetir em continuidade
os dicionários podiam ser peças de armários onde nos encontrassemos
as férias são uma estrada comprida com curvas e garrafas de água.
esta semana fui às compras e trouxe, em sacos de plástico, requeijão
pão fresco manteiga chourição guardanapos fígado de porco
patê cervejas arroz doce salame salsichas alfaces iogurtes
papel higiénico bolos secos e uma revista de palavras cruzadas.
esta semana a minha mãe não me falou e a minha avó faz anos
todos os jornais trazem na capa jogadores de futebol e bandeirinhas
um pneu do meu carro estava vazio e eu enchi-o antes de ir ver-te
não me acabou a gasolina a meio do caminho e fiquei contente.
esta semana tu foste embora para dentro de um livro que eu escrevi
e os meus versos longos ficaram cheios de pedacinhos de ti
eu sorrio ao ver crescer os meus filhos que ainda não nasceram
e entretenho-me a ver desenhos animados e a mudar de calendário.

13.6.06

passadeiras

atravessar a estrada pode ser uma maneira não tão simples assim
de se ser atropelado por um conjunto incomportável de pensamentos,
era o que me dizia o meu tio quando me encontrava na calçada
a fazer contas de somar com os meus dedos ainda tão pequenos.
quando me crescerem as pernas, também me crescerão os cabelos,
e então vou ser grande e cabeludo e de dedos esticados
conseguirei somar as várias partes do universo que me escapam hoje,
os sonhos, os lábios, as raízes, as moscas, as nuvens e o pó.
o meu tio sorria e segurava-me pelos ombros de uma forma tão terna
que eu me sentia a conduzir uma mota pelas estradas que levam à praia,
um vento soprava na nossa direcção e o nosso destino primeiro
tornava-se outro e depois outro e depois outro, de uma maneira
simples e só observável para quem era mão ou ombro neste encontro.
quando me crescerem os olhos, vou poder ver para lá daquela serra
e poderei descer pelo vale e subir outra serra e descer outro vale
e ir até onde nunca ninguém foi, pois terei olhos grandes e crescidos.
o meu tio fazia-me parar a motorizada, segurava-me a mão
e levava-me de volta a casa. se fosses um gato não te perdias tantas vezes
mas também não gostarias que te cortassem as unhas tão curtas
de uma maneira que nem a ti mesmo te consegues contar pelos dedos.
quando a porta se abria, a minha mãe estava sempre a chorar
e a televisão berrava lá de dentro da sala num concurso de fim de tarde
onde o meu pai fingia que mais ninguém existia senão o seu descanso.
eu a contar pelos dedos o tempo que faltava para atravessar a estrada.

12.6.06

Contos do Mundial (III): Água

No hotel de Dacar havia uma sala onde passavam jogos do mundial. Um ecrã enorme, poltronas para os hóspedes, ar condicionado. Sentámo-nos ali, no escuro, e começámos a ver um qualquer jogo banal. Acho que era um Bélgica-Dinamarca, mas não tenho a certeza. Às tantas, fiquei tonto de ver tanta correria e a bola a saltar, no meio daquela cor meio pálida do sistema de projecção. E foi num desses momentos indistintos, numa excitação que me era alheia, que me dei conta da enormidade do que vira. Tive a súbita consciência de estar vivo e de viver num cansaço infinito...

...Dois dias antes, quando eu e os meus companheiros decidimos partir, o calor estrangulava a terra e a luz era insuportável.
A cidade entrara em colapso, com milhares de refugiados que tinham procurado ali refúgio do tiroteio que continuava na capital.
Havia um cheiro a gente, que se misturava com o odor suave e doce das mangas maduras. Por vezes, caía um fruto da árvore e corriam dezenas de crianças (que antes da queda não estavam lá), como que movidas pela poderosa mola da fome. Víamos uma curta comoção, quase uma briga, e mais nada, apenas as mesmas caras de falsa tranquilidade de uma multidão à espera. Observados de perto, os rostos estavam ansiosos, cheios de medo.
O resto da cidade era uma zona de catástrofe. Faltava tudo, electricidade, comida e água, e temia-se que o elevado número de refugiados causasse uma epidemia.
Debaixo da sombra, estávamos nós, os quatro brancos; o motorista tinha ido buscar a viatura algures. O ponto de espera não era importante, outro acaso, fora ali que nos conduzira a sorte, ao rapaz que tinha carro e combustível; nós, pagávamos uma fortuna para que ele nos levasse ao Senegal. E o rapaz disse, esperem aqui, e ali estávamos, obedientes, sem nada para fazer.
E eu brincava com uma grande garrafa de água de plástico, meio bebida, daquelas de litro e meio. Um ligeiro movimento do braço e a garrafa meio bebida oscilava na atmosfera, como se fosse um grande lustre de cristal a dançar pendularmente, formando um largo arco brilhante.
Juntavam-se vizinhos, desesperados, maltrapilhos. Falaram de futebol, pois havia ecos de um campeonato do mundo; o Brasil ganha por certo, pois é, ganhar é certo.
Eles perguntaram o que íamos fazer e nós explicámos que íamos para Dacar, mas que voltaríamos por certo.
Contem que o povo não aguenta mais, disse um dos vizinhos, um homenzinho assustado, que trazia um filhote nu pela mão. E o meu amigo disse que sim, senhor, que íamos contar tudo.
Ficámos ali um bocado no calor de brasa, em silêncio, à espera do motorista, depois um dos moços contou que tinha sido jogador de futebol, muito antes da guerra, claro. Quando lhe perguntei o que fazia agora, encolheu os ombros e disse que se calhasse ia para Portugal. Depois, outro falou assim: Tenho mulher e quatro filhos, estou em casa de uns primos, não há nada para comer, temos sede e fome, é preciso esperar.
Eu continuara a fazer aquele gesto impaciente de mover a minha garrafa de água meio cheia num arco pendular desenhado pelo meu braço.
Quatro crianças estavam à minha volta e uma delas seguia o movimento do meu braço. Era baixinha, dava-me pela mão, e a sua cabeça seguia, fascinada, o movimento oscilante do braço e da garrafa de água meio cheia, e umas cintilações de luz intensa faziam brilhar a água que se agitava no interior da garrafa de plástico de litro e meio.
Pensei que ele se fascinava com a luminosidade, os brilhos, a beleza dos turbilhões ao acaso.
E, então, o menino disse assim: dá-me água.
Não pediu. Na inocência da sua sede, dera uma ordem....

...A Dinamarca (seria a Dinamarca?) marcou um golo e os clientes na sala do hotel de Dacar ficaram contentes, excepto nós os quatro, que ainda não compreendíamos bem aquelas imagens. E no meio do ruído de fundo, que me assustara, senti de súbito uma sede horrível, quase um pânico. As minhas entranhas tinham paralisado e magoavam, como se acabassem de cristalizar num único golpe. O meu corpo transformara-se em carência e dor, tomado por uma espécie de buraco negro a roer-me por dentro.
Peguei na pequena garrafa de água fresca ao meu lado e bebi dela, um gole, depois outro, sentindo que chorava de alívio e que o mundo se recompunha, após ter oscilado no seu equilíbrio eterno.

9.6.06

de uma garrafa deitada ao mar na Noruega

podíamos ir aos saldos procurar livros de autores que já ninguém conhece
mas esta noite a feira fecha mais cedo e nós ainda estamos num dos extremos da cidade.
tu passas os teus dedos pelo meu cabelo despenteado e eu repito, para mim,
que certas coisas acontecem porque nos deixamos distrair e quando percebemos
somos apanhados por uma série de ventos e correntes que nos embrulham os pés
e nos arrastam pela calçada, acima e abaixo entre pessoas que nos olham de lado.
podíamos ir aos saldos e eu voltaria a casa a enrolar os dedos num saco de papel
sentado ao teu lado no metropolitano enquanto tu olharias a capa de um jornal
na outra ponta da carruagem. íriamos procurar certas ruas em silêncio
e acabar sempre por encontrar os nossos destroços numa qualquer mesa de um bar
com a porta aberta a noite inteira. mas nós ainda estamos num dos extremos da cidade
e ainda somos do tempo em que as coisas simples se tornam complicadas
porque não sabemos as palavras certas para os sentimentos que explodem em nós
ou porque essas palavras não existem e nós ainda pensamos que sim.

8.6.06

Falso soneto nº2

Regresso sempre a casa antes de ti,
preparo então o corpo à tua espera.
Começo por lembrar o que senti
quando apenas pensava «Quem me dera».

Espero os teus passos, o final,
o tinir das chaves que seguras.
Esse momento exacto, esse sinal
para depois abrir-te a porta, às escuras.

Não permito sequer que te prepares,
dispo-te aí mesmo na entrada.
Beijo-te aguardando que repares

No desejo, na vontade acumulada.
Então, levas-me a todos os lugares
e neles estamos nós e tudo é nada.

passe falhado

foi o que combinamos - tu compravas o pão e as flores
eu passava pelo supermercado e trazia as carnes
as brasas seriam preparadas em conjunto e o vinho
já estava há muito no frigorífico - deve beber-se a 6º C.
tínhamos que chegar pelas seis ou sete da tarde
o tempo suficiente para ter tudo preparado a tempo
de nos sentarmos juntos à mesa a roer os ossos
no lugar das unhas que nervosas estão sempre nestes dias.
foi o que combinamos - pelo telefone era o mais simples
mandavas-me mensagens a toda a hora a dizer que me amas
e eu respondia com a face muito vermelha porque no escritório
o Dr. Almeida não nos gosta de ver de telemóvel na mão.
mas entretanto recebi um e-mail seco e branco
onde dizias que ias ter que ficar a trabalhar até mais tarde
tão branco e tão seco que me feria os olhos a claridade
me feria os olhos com tanta intensidez que me fez chorar.

Contos do Mundial (II): O gordo joga à baliza (início)

1. O subúrbio sombrio espalhava-se por todo o vale, em retalhos de bairros dispersos, semelhantes a brancas torres de castelo.
Às cinco da tarde, os miúdos corriam para a traseira do liceu e passavam por um buraco da cerca de arame, numa algazarra. Alguns já tinham terminado as aulas, outros faziam gazeta.
Passavam pelo café Libelinha, que ficava na esquina do último renque de prédios. Aquele era o ponto de reunião dos velhos e dos desempregados, que naquele tempo havia muitos por ali, a queimarem tardes.
O campo ficava perto do liceu, no descampado onde tinham feito aterros e colinas artificiais. No meio do caos de construções incompletas, havia um terreno liso e rectangular. Deveria ter nascido ali um novo prédio, mas ficara apenas aquela plataforma sem serventia. Um buraco pouco profundo, sem drenagem, que as chuvadas enlameavam e o calor do verão deixava seco, com a dureza de chão de pedra. Os miúdos tinham marcado linhas laterais e de meio campo. As balizas eram dois paus espetados, unidos por um fio abaulado no meio, seguro por duas latas vazias.
A bola de cauchu pertencia a um dos miúdos, chamado Tiago, que tinha um drible fantástico e era sempre um dos capitães. Mas havia outros rapazes, alguns mais populares, como António, já alto para os seus 14 anos e que jogava à defesa; o veloz Daniel, que fazia de extremo; ou ainda Pedro, Adelino, Fernando, alguns cábulas, outros sempre alegres.
Era um grupo buliçoso, que enchia o descampado com gritos, ao jogar disputadas partidas. E a melodia chegava ao café Libelinha, apenas abafada pelo ruído dos comboios que passavam junto ao descampado, a 30 metros daquele estádio que a imaginação inventara.



2. Um dos rapazes chamava-se Sebastião, mas ninguém lhe chamava assim, apenas gordo. Aparecera por acaso e ficou a ver os outros a jogar, sentado num montinho de terra de onde dominava as movimentações. Nenhum dos rapazes lhe deu importância, à excepção de Ângelo, que tinha a mesma idade e era vizinho no mesmo prédio.
Sebastião era pesado e lento, falava pouco, amarrado pela sua timidez a uma melancolia que, à primeira vista, parecia ser falta de inteligência. Muitos solitários escondem-se numa mudez que as outras pessoas julgam de forma errada. Os rapazes riam-se de Sebastião, desajeitado e obeso, sobretudo quando tentava segui-los e fazer as mesmas proezas com o seu corpo desobediente: tentar passar pelo buraco da cerca do liceu, o rabo preso no arame e o peito arfando, embaraçado no próprio peso.
Em certa ocasião, um dos jogadores adoeceu. Havia número ímpar de rapazes e não fazia sentido excluir um jogador para formar as duas equipas. Sebastião foi a última escolha. Severo, pouco convencido, António ordenou ao recruta que lhe fora imposto:
“O gordo joga à baliza”.
Podia ter sido a revelação de um talento, mas não foi. Sebastião era demasiado lento e, embora tivesse um volume apreciável, e esticasse os braços tanto quanto podia, o facto é que as bolas passavam, chutadas com precisão para pontos onde não havia nem braço nem perna, antes o luminoso espaço vazio.
Houve então aquele forte pontapé rasteiro. Sebastião estava tão concentrado na bola que tentou mergulhar na sua direcção, em vez de adivinhar a trajectória. O vasto corpo estendeu-se, caiu com estrondo e levantou uma nuvem de poeira. O joelho esfolado no barro endurecido e a pele dos braços em pele viva. A bola passou sob o corpo, antes de Sebastião chegar ao chão. Passou devagar, irónica, para golo.
Chegavam os defesas, para quem a culpa era clara:
“Bolas, gordo, não serves para nada!”, exclamou um deles, como se cuspisse.
E Sebastião, numa lástima, refreava as lágrimas que exigiam rebentar em enxurrada.

Contos do Mundial (II): O gordo joga à baliza (continuação)

3. Não é possível apagar a mancha de um golo humilhante. Por isso, Sebastião passou a jogar apenas em sonhos. Quando aparecia no campo improvisado (e aparecia quase sempre) era excluído, mesmo que houvesse número ímpar de jogadores e fosse necessário mais um para completar a equipa. Por vezes, Sebastião ganhava um companheiro na bancada de público. Quase sempre o mesmo, o pequeno Ângelo, que também não tinha talento para fintas.
A amizade aos 14 anos nunca surge em golpe único, mas cresce como o faz um corpo novo, com as suas deformações adolescentes, o braço que se estende e a perna descoordenada, a voz que perde o controlo. E assim é a amizade, uma confusa sucessão de eventos. Sebastião e Ângelo, os dois piores jogadores do grupo do liceu, foram ficando amigos.
Porque nunca jogavam, davam longos passeios pela desolada paisagem suburbana, pairando em jardins abandonados, depois nos cruzamentos de ruas enviesadas, subindo a colina descampada até à linha férrea, onde viam passar comboios. Não falavam muito, não precisavam.


4. Quando nesse ano começou o campeonato do mundo, os dois miúdos por vezes passavam em frente ao café Libelinha, na hora dos jogos. Naquele tempo, a televisão ainda era a preto e branco e o televisor do café tinha a antena avariada, a imagem tremente e cheia de fantasmas. A sala enchia-se de homens desocupados, que falavam sobre nada. As cadeiras estavam alinhadas em anfiteatro e no ar pairava o cheiro a cerveja derramada.
Numa tarde, quase à hora do jantar, Sebastião e Ângelo ficaram a ver um jogo. E aquilo aconteceu de súbito, sem aviso. Entre os fantasmas, na imagem imprecisa, o temível Quiroga conquistou a bola e avançou sem oposição. E, no caminho da baliza, estava apenas Emerson, o guarda-redes. Foi tudo rápido: Quiroga disparou para o espaço vazio e Emerson voou na direcção da bola, esticando-se como se fosse um pássaro.
No café, todos reagiram com emoção. E foi no meio dessa comoção que os dois rapazes saíram para a rua, enquanto na memória de Sebastião cristalizava a imagem do guarda-redes a voar na direcção da bola, uma imagem que ia ficando cada vez mais lenta e graciosa, o desenho de um arco ou a fantasia do sonho, até ser o movimento suave de um corpo que deixara de estar amarrado ao próprio peso e que flutuava, ausente de si próprio.



5. O subúrbio mudou. Após as férias da escola, recomeçaram as obras no descampado. Ergueu-se um novo bairro. O campo de futebol foi transformado em fileira de prédios. Depois, quando as estruturas ficaram prontas, vieram mais habitantes.
Sebastião mudou de turma e Ângelo mudou de escola. Nesse mesmo ano, os pais de Ângelo divorciaram-se e ele partiu com a mãe para outro bairro.
Os rapazes da escola continuaram a jogar futebol, nas traseiras de um pátio recuado, em espaço acanhado. Os jogos tinham perdido o encanto e o entusiasmo foi morrendo devagar. Sebastião também mudara: ao crescer, já não parecia tão gordo. Era ainda um rapaz calado. Gostava da solidão e de divagar nos seus pensamentos. Mas numa parte talvez adormecida da consciência, pairava ainda a memória do longínquo voo do guarda-redes, o seu desafio à gravidade, o sonho subindo em pássaro, como se o peso fosse algo que a vontade deveria vencer. Estes pensamentos não eram concretos e não apareciam em todas as ocasiões. Antes formavam uma espécie de neblina que separava Sebastião das vozes dos fantasmas, as múltiplas vozes do mundo real, lá fora, cujo eco repetia sempre o estribilho: “O gordo joga à baliza”. Com estas palavras, ou outras parecidas.

6.6.06

6.5 na escala da língua

(..)Eu, narradora atenta num comboio cheio de corpos em hora de ponta, ia agora debruçar-me na estória que se está a passar à minha frente quando,
quando no momento oportuno do lugar daquilo que se ia escrever surge uma outra personagem ao fundo das coisas que penso e,
em asfixia,
me faz ver para dizer:
- tornei-me educadora infantil porque sempre quis ser médica:
a minha mãe sempre me achou pouco inteligente.
Eu própria sempre me achei pouco inteligente com ela e acho oportuno contar que, ao contrário do suposto, nunca tive vontade de chorar por isso: as minhas lágrimas secam ao sol.




Queria ter pena e abraçá-la neste comboio gigante de gente em hora de ponta, mas para além de tudo o resto, um aglomerado humano resolveu almoçar dentro da minha cabeça e fazer tudo doer
-desde pequena achei estranho dizerem-me que um dia seria capaz de me reproduzir com a benção da regra que me ia descer todos os meses do ano
(de cima para baixo? da cabeça para o estômago, pensei)

por isso fechei os olhos com força e imaginei-me em Praga no Inverno
(eu sempre quis ir a Praga no Inverno)

quando me apercebi o que podia acontecer ao meu corpo tinha um peito branco grande com dois bicos cor de rosa e duas coxas desenhadas entre as pernas e a barriga:
estava nas vésperas da regra que devia aparecer aos 10 por tradição familiar.
Veio-me afinal quando eu tinha 14, e ao contrário das meninas da minha idade, a minha regra não era vermelha: era amarela cor de sol.

5.6.06

bilhete amarrotado a voar pela cidade depois de abrires a caixa do correio

se nos encontrarmos uma tarde no jardim do palácio de cristal
quero-te dizer que o vento que sopra é uma memória
de um tempo em que eu ainda não conseguia encontrar as palavras
certas para todas as coisas que preciso colocar fora de mim.
vais achar estranho que eu insista em falar com os meus dedos
e quererás acalmar-me ao ponto de segurares o meu joelho
que se movimenta muito muito acima e abaixo
como se estivesse constantemente a ouvir uma música de um ritmo acelerado.

se nos encontrarmos uma tarde no jardim do palácio de cristal
vou tirar da mala um livro de capa escura onde se veja
um senhor muito alto com um bigode antigo rodeado de filhas
à frente de uma casa muito limpa e arranjada toda à volta.
vou procurar pelo meio das páginas um poema que possa ler
baixinho e quase que sussurrá-lo ao teu ouvido
e vou também desviar os teus cabelos de frente da tua face
e encadear-me com o sol reflectindo na tua pele tão clara.

se nos encontrarmos uma tarde no jardim do palácio de cristal
vou gostar de ouvir o barulho dos meus passos pelas veredas
e gozar a sombra e a frescura que nos dão as árvores
porque será, certamente, numa tarde de calor o nosso encontro.
depois talvez te segure a mão, envergonhado, e te leve
a beber uma água fresca no café do palácio, que é grande
e tem ar condicionado. vamos ficar por ali até ser de noite,
sem sermos capazes de dizer algumas das coisas que correm em nós.

como no tempo em que eu ainda não conseguia encontrar as palavras
certas para todas as coisas que preciso colocar mais dentro de mim.

3.6.06

Contos do Mundial (I): O Hotel (primeira parte)

Não dei pelo erro, porque o hotel estava numa parte fresca e agradável da cidade, rodeado de florestas. Achei estranho que me fizessem assinar tanta papelada no check-in, mas a viagem cansara-me e não reparei nos detalhes. O quarto era fantástico e fiquei contente por o preço ser tão acessível. Larguei o casaco sobre uma cadeira; o bagageiro colocou as malas com cuidado no chão e despediu-se com um sorriso. Antes de me lançar sobre a cama e dormir, ainda tive um baque no coração, uma súbita ansiedade. Corri para o casaco e descansei. Lá estava o bilhete, o precioso bilhete dos oitavos de final. Tinha um dos melhores lugares do estádio para ver o Portugal-Argentina. Enfim, adormeci a imaginar as jogadas do Deco e do Figo, o magnífico golo do Pauleta. A vitória portuguesa e a magia do melhor jogo...
Na manhã seguinte, ao acordar, estranhei o silêncio no hotel e, sobretudo, que não houvesse uma televisão no quarto. Em pleno mundial de futebol, um quarto sem televisão! Era peculiar!
Quando desci para o pequeno-almoço, esqueci o assunto. A sala de refeições estava vazia, excepto o casal de velhos e uma loura espampanante. A comida era magnífica. Regressei ao quarto e descansei. Sentia-me já em estágio para o grande jogo dessa noite, poupando energias.
Às onze, desci para ler os jornais e estranhei que não houvesse jornais. Lembrei-me da televisão e abordei o rapaz na recepção:
“O senhor pode explicar-me porque razão não há televisão no meu quarto?”
O rapaz olhou-me com um ar desconfiado, como se o meu cartão de crédito estivesse na lista negra. Apesar de tudo, insisti:
“E não me pode arranjar aí uns jornais, para ver os resultados do futebol? Nem que seja o Financial Times!”
O tipo olhou para mim com ar alarmado. Empalidecera. Pegou no telefone e chamou um tal de doutor Fassbeander. Estranhei!
Chegou de um corredor lateral aquela figura magricela e agitada. O doutor Fassbeander lembrava Peter Sellers, o actor. Falava com forte pronúncia e tinha um tique nervoso, um súbito espasmo da metade direita da cara, que lhe distorcia os músculos, obrigando-o a uma horrível piscadela de olho.
“O Swarzkopf disse-me que o senhor pediu jornais...”, disse Fassbeander.
“Quem é o Swarzkopf?”
“O rapaz da recepção”.
“Ah!”
“E para que quer os jornais?”
“Para ver os resultados do futebol!”
Ao ouvir aquilo, Fassbaender entrou em transe. Levou as mãos ao cabelo, muito excitado.
“Uma recaída!”, exclamou, como se falasse sozinho.
Foi então que ele apontou para o que estava escrito, em letras garrafais, na recepção, e que eu não vira:
“Hotel anti-mundial. Tranquilidade e retiro. Garantimos aos clientes total isolamento do fanático vício do futebol”.
Ia-me dando uma coisa. Ao chegar ali, estava ensonado e não vira o cartaz. Compreendi que, ao assinar a papelada, na recepção, abdicara da minha liberdade de ver os oitavos de final.
Fassbeander colocou o braço sobre o meu ombro e levou-me para junto da piscina:
Herr Naves, quando concluiu o check-in, fez um pedido de ajuda especializada e colocou-se nas nossas mãos. Como bem sabe, este é um hotel para férias sem futebol. Estará totalmente separado das agitações desse jogo funesto. Esteja tranquilo, sou um psiquiatra encartado e vou libertá-lo do vício do futebol. Você é um adicto em situação grave, aliás, a situação é tão grave como se houvesse aqui drogas duras. Mas temos o remédio”.
Depois, Fassbeander chamou dois enfermeiros:
“Aqui o herr Naves está a ter uma recaída. Levem-no para o quarto e mantenham-no lá fechado. E procurem nas bagagens, vejam se ele tem algum bilhete para jogos do mundial”.
Tremi, ao ouvir aquilo. Felizmente, tinha o bilhete do Portugal-Argentina bem escondido.


(Conseguirá o nosso herói libertar-se do cruel Fassbeander e assistir ao imortal confronto entre as duas melhores equipas do mundial? Quem irá vencer o Portugal-Argentina? Não perca o segundo episódio desta aventura verídica... )

Contos do mundial (I): O Hotel (continuação)

Os dois gorilas, ao carregarem escada acima os meus cem quilos, parecia que levavam pela mão um saco de penas. Mesmo assim, estrebuchei e protestei, lembrei-lhes os meus direitos constitucionais e fiz ameaças, nomeadamente de que era primo de uma amiga do embaixador, o que os fez rir. Como estava a entrar em desespero, lembrei-lhes que aquela atitude era uma violação dos tratados da União Europeia, o que os fez rir em grandes gargalhadas.
No meio da confusão, reparei numa cabeça loura que fugidiamente apareceu numa porta entreaberta, para logo desaparecer no interior do quarto. Essa porta fechou-se de imediato, embora sem ruído.
Os enfermeiros lançaram-me para dentro do quarto e fizeram uma busca pouco minuciosa, à procura de bilhetes para jogos. Não encontraram nada e saíram, ainda com substanciais risadas.
Comecei logo a imaginar planos de fuga, mas nenhum deles parecia poder funcionar. Então, senti leves pancadas na minha porta. Fui abrir. Era uma mulher loira, espampanante. Tinha-a visto antes, na sala de refeições. Com gestos conspirativos, entrou pelo meu quarto:
“Chamo-me Conchita Velásquez”, disse ela, falando baixinho, em castelhano. “E sou argentina”.
Conchita chegara ao hotel no dia anterior, para ver os oitavos de final do campeonato. Mas cometera o mesmo erro que eu. Felizmente, também conseguira esconder o seu bilhete do malvado Fassbeander. De repente, estávamos a discutir planos a dois.
“Não posso perder este Argentina-Portugal”, disse ela.
“É um Portugal-Argentina”, esclareci.
A primeira ideia que tivemos foi sair pela porta da frente, aproveitando uma distracção dos guardas. Fizemos um cuidadoso reconhecimento do trajecto, mas depressa vimos que havia sentinelas nos principais pontos de fuga. Gastámos imenso tempo nessas tentativas frustradas e quando nos apercebemos da urgência da situação, faltavam menos de duas horas para o início dos oitavos de final. O plano B parecia mais eficaz. Foi Conchita quem o imaginou, pois tinha estudado cuidadosamente a arquitectura do hotel:
“Há um corredor que vai dar a uma zona de serviço menos frequentada”, explicou ela e eu comecei a observá-la melhor: o seu corpo perfeito, embora pequeno; a pele morena (sim, o cabelo loiro e comprido era pintado); uma certa disposição fogosa, que lhe transmitia um encanto fascinante. Olhei o relógio e disse que faltavam 45 minutos para o início do jogo. Ela disse que não havia mais tempo a perder: pôs ao ombro uma malinha castanha, pegou numa blusa azul e branca e avançou em busca do tal corredor, liderando a nossa evasão. Era uma mulher de armas. Tinha as calças muito justas e as pernas bem desenhadas avançavam com uma determinação que não seria possível alguém travar.
Tal como Conchita previra, passámos facilmente as primeiras barreiras do caminho e conseguimos chegar aos jardins do hotel. Só tivemos azar na última fase da fuga e fomos detectados por um dos dois enfermeiros, que saíra mesmo a essa hora para fumar um cigarro.
Mas já ninguém podia evitar a nossa fuga. Descemos a alameda e encontrámos um táxi. Ordenámos ao taxista que fosse para o estádio, na máxima velocidade, pois só faltava meia hora para o início do jogo. O táxi arrancou e ainda ouvimos os gritos de Fassbaender, que tentava impedir-nos de fugir, correndo atrás do táxi.
Nas imediações do estádio, começámos a ver as claques portuguesa e argentina. E foi então que cometemos um erro fatal: devíamos ter-nos separado, Conchita e eu. Fassbaender nunca nos teria apanhado. Mas não o fizemos, por uma questão sentimental, talvez; nos filmes de evasões, os fugitivos nunca se separam.
Foi na porta 2B que Fassbeander nos capturou. Ele vinha acompanhado de um polícia enorme e sorridente, que lembrava Curd Jurgens. Aliás, era tão parecido com Curd Jurgens, o actor, que julguei ter enlouquecido.
“É preciso impedir estes dois doentes de verem o jogo de futebol”, gritava Fassbeander.
Curd Jurgens, o polícia, olhava para os nossos bilhetes, mas não se comoveu. Acreditara no que lhe dizia o doido Fassbeander, que dava saltinhos nervosos e não se calava. Ainda tentei apelar aos adeptos portugueses que entravam pela porta 2B e Conchita abria os braços, apelando aos argentinos sorridentes que entravam no estádio. Mas Curd Jurgens foi inflexível.
À hora em que devia ter começado o jogo, eu e Conchita estávamos num quarto do hotel anti-mundial, fechados à chave.
Ela tirou os sapatos e deitou-se na cama. Desesperada, começou a chorar baixinho. Aproximei-me dela, comovido.
“Tenho a certeza de que a Argentina vai vencer o jogo”, disse-lhe, para a confortar.
“Portugal é mais forte”, respondeu Conchita Velásquez, com a cara repleta de lágrimas.
Foi naquele preciso momento que compreendi a sua beleza. E, apaixonado, aproximei os meus lábios dos dela e beijei-a longamente, a pensar na melhor maneira de romper a defesa da Argentina.

o sapo

o sapo volta a casa quando o dia nasce, mãos nos bolsos,
o fato amassado de encontrões e algumas quedas,
um cigarro segurando o hálito a cerveja e mais cigarros.
tem curta esperança de vida, o sapo.
tudo começou umas horas antes, uns dias, uns meses antes,
numa máquina de costura que juntou peças de tecido
amarelas e verdes, que com pregas fez umas patas
e colou uns olhos bem grandes de sapo no topo da cabeça.
não há mais nenhuma esperança nesta vida para um sapo
que a de encontrar uma princesa que lhe salve do seu destino
de morrer inchado com um cigarro nos lábios
empurrado por um monte de crianças à procura de experiências.
a noite inteira foi cerveja e vinho pelos bares
uma correria acima e abaixo por ruas apertadas
umas quantas caras conhecidas a desfocarem-se pelas horas
e pedrinhas de haxixe a desfazerem-se em rodas de muitas mãos.
a tudo isto sobrevive um verdadeiro sapo, o sapo artista,
o sapo cantor de modinhas esquecidas, o sapo que pinta pelas paredes
alguns pregões, o sapo que discorre sobre a funcionalidade
da maquinaria numa indústria e impressiona assim algumas adolescentes.
o sapo volta, enfim, a casa, quando o dia nasce de um sol quente
e pelas ruas já só sobra o lixo acumulado da loucura da noite.
o sapo perdeu o telemóvel e resta-lhe uma princesa incontactável.
acabou-se o carnaval, sapo, podes arrumar outra vez o fato.

1.6.06

Um falso soneto

Dizer-te, só a ti, o que senti
e confessares igual teu sentimento.
Nada lamentar do que perdi
e adivinhar, em ti, nenhum lamento.

Saber que Um e Outra nos deparam,
iguais temores também iguais certezas.
E nem vidas, as vividas, nos separam
ou soterradas aguardam as defesas.

Olhar-te sem que o tempo nos obrigue
a repetir cansados gestos ou palavras.
Ou o silêncio crescer como um tabique

entre aquilo que dás e o que davas.
Aqui fica o meu desejo e se replique,
ames hoje quanto ontem me esperavas.

O livro das coxas


(...) para ser completamente sóbria com a apresentação factual, confidencio em exactidão que desconfio de mim mesma quando acordo de manhã, desconfio da cor do meu cabelo, da textura das minhas unhas, do reflexo do meu corpo no espelho da casa de banho:
porque podiam estar todos a mentir-me ao mesmo tempo.


Desconfio-me na parte mais difícil da desconfiança pessoal:
às vezes o meu corpo pede-me prazer sozinho, e até os meus dedos das mãos se retraem, ganham uma flacidez preguiçosa, e não fazem o que há a fazer quando me quero dar a mim.

Olho-me ao espelho novamente:
sei de coisas que me nascem à beira dos olhos à maneira de gente a conversar-me nas pestanas, e penso que se me pudesse desenhar tão desasossegada quanto me sinto seria uma mulher nervosa a distribuir panfletos publicitários pretos a transeuntes, ou seria talvez apenas alguém sem vida sentado na tampa da campa que é sua, a beber gotas de chuva que caem do céu a saber a leite (...)

Hoje à noite vou ser feliz.