30.12.05

Os amantes sem endereço

O rio parecia sereno, mas corria em maré cheia, numa violência interna que o plano da superfície ainda ocultava. Um velho cacilheiro avançou nas águas, arfante e cansado, e só os picos nervosos das ondas desencontradas, em choque com o casco, lembravam a sua aflição na corrente. O despertar gelado da manhã tinha um vento que obrigava os apressados viajantes a fecharem mais os casacos contra o corpo.


O barco fez a manobra de acostagem e colou-se lentamente ao cais, largando um sopro de fumo, negro e leve, que se elevou na atmosfera límpida. As gaivotas voavam nos turbilhões de ar, tentando equilibrar-se com as asas estendidas, mas sustentadas pelo vento, num equilíbrio precário que lembrava uma dança, de tal forma evoluíam no nada, umas em torno das outras.


Do barco repleto saiu a multidão. A quantidade de gente que desembarcou, homens e mulheres apressados, parecia inesgotável. Depois, havia menos gente, e ainda menos, até que ficavam só alguns mais atrasados.


Distinguiu-a então, com a sua figura esguia e frágil. A mulher viu-o também, encostado, cabelo revolto pela ventania, o cigarro apagado na mão.


Não se abraçaram, nem sequer se tocaram. A mulher parecia mais infeliz que nunca, olhou-o com uma timidez, um gesto de hesitação que lhe revelou tudo.


“Ele sabe de nós?”


Ela não falou. Nem sequer confirmou com um gesto. Semicerrou os olhos, por que o vento a fazia chorar e não queria chorar.


O homem largou fora a beata meio consumida e que a humidade apagara.


“Tens que sair de casa”, disse.


A mulher permaneceu em silêncio. Talvez tivesse sorrido amargamente, pois ambos sabiam que isso era impossível. Perderia as crianças.


“Vamos?”, perguntou ela.


O homem deu-lhe o braço, que a mulher aceitou.


E caminharam assim para o emprego, juntos, amantes sem endereço.


E as gaivotas pairavam no ar e o rio descia para o mar, como sempre fizera, numa corrente poderosa e invisível.

Etiquetas:

As cinco estrelas do crítico

Para quem queira entender melhor a vida atribulada do co-autor deste blogue, aqui fica a sugestão de um filme que desenvolve supreendentes perpectivas sobre o seu passado e cria um novo paradigma para a apreciação crítica da sua obra literária. Imperdível.

Detalhe ignorado na vida de Ludwig W.

Num dos últimos dias da sua vida, Wittgenstein deixou cair a carteira que se perdeu entre os canteiros de begónias. No entanto, não deu importância ao assunto. Preocupou-o muito mais o que viu quando soergueu a cabeça e reparou na wisteria chinensise descontrolada, que lhe impedia a luz de atravessar a janela da sala. «As glícinias», pensou, «podem ser de uma beleza asfixiante quando crescem».
Ilust: Glicínias, Monet.

29.12.05

Microcosmos III

Eu tinha esperado dois meses por aquele momento e, agora, que ele se consumava, era dominado por uma terrível ansiedade. Um homem de fato e gravata, luvas brancas, entrou na sala. Caminhava como se fosse um mestre de cerimónias e trazia na mão um dossier fino. Foi a primeira desilusão que tive. O meu dossier era tão pequeno! O homem pousou a pasta sobre a mesa e saiu sem dizer mais uma palavra. Deixado sozinho, comecei a ler, sentindo-me a ler os meus pecados no confessionário do grande arquivo divino. Banalidades, banalidades, Lajos Kormányos, nascido em 1961, em Budapeste, blá, blá, blá, família de funcionários, sem história, não apresenta qualquer risco para o Estado. Li um documento esterilizado, com data de 1980, sobre a minha vida estudantil: faculdade de economia, não expressa opiniões políticas, é estudante medíocre, sem entusiasmo pela “construção do socialismo”. A linguagem absurda, já naquele tempo de fim de regime soava tão ridículo! Então cheguei à “folha”. O texto não teria mais de dez linhas e, apesar disso, era esmagador. O relatório da agente “Medusa”, nome de código, dirigido ao coronel Varga, com avaliação intermédia de um tenente da AVO: “A prazo, Kr. poderá tornar-se dissidente, recomendo maior vigilância”, escrevia o tenente. Data de Novembro de 1986. E “Medusa” relatava uma conversa que só (...) poderia conhecer: “Ao declarar o seu amor, Kr. afirmou com extrema clareza que odiava o regime e desejava o seu derrube. Mais disse que queria passar para o ocidente, levar-me com ele para algum país que tivesse sol e mar, liberdade e fantasia. Kr. também defendeu a acção directa, se necessário a própria luta armada contra o socialismo. Foram as suas exactas palavras. O suspeito está apaixonado por mim, o que poderá comprometer a minha...”. Não consegui ler mais, as lágrimas impediam-me a visão. Na memória, a doçura do sorriso dela. Fechei o dossier, enquanto a palavra “suspeito” martelava o meu pensamento. Eu, que a amara (...) De súbito, não desejava conhecer mais. Como se adivinhasse, o homem de luvas brancas entrou na sala, pegou na pasta e saiu. Vira muitos como eu a chorar ali. E isso não parecia impressioná-lo.


Microhistória de Lajos Kormanyos. Tradução do original húngaro: Luís Naves

Do mesmo bloco, na mesma gaveta

(...)Ao abrirmos a porta, uma boneca de louça vestida de gueixa recebe-nos e sorri. Um silêncio que foi casa, onde os sons se encontram gravados, magnéticos, sobre todos os objectos.

Entrar aqui, é entrarmos no nosso próprio quarto, no mais íntimo de todos os refúgios. Sem ser aqui, só na memória se sobrepõem em colagem tantas imagens sem a cronologia das mãos e se descansa, na recordação dos dias longos.

Este lugar é todo ele um armário de poemas desconhecidos. Vive dos segredos mais simples, por vezes os mais densos: uma capa de hospital vazia emoldurada e fotografada a preto e branco, uma mulher desenhada escovando o cabelo, traços ténues como estes. Recados para quem visita e se ilude na habitação provisória deste espaço. Branco agora, para sempre, branco reunião de todas as cores(...)

Dialogue on the beach




- Look at these waves. Don’t they make you feel so alive, darling?

– Very much so. I used to come here, you know?

– You did? With whom?

Bloco encontrado numa gaveta

Este cenário onde se deram as marcas sem que verdadeiramente se dessem. Uma casa a soma das feridas por dentro, golpes disfarçados nas paredes, luz. A saída uma penosa adaptação à vida e à morte, ao ciclo sexuado. Casulo, bola de ópio, impotente o corpo e inertes os desejos.
Sei porque estive aí onde agora estás. A mesma posição encaixada na tua, eu deitada mulher com a mão no teu calor, os pensamentos símbolos de tão próximos. E também depois com a minha solidão. Com os teus restos, as sobras do nosso passado abandonadas, dentro e sobre os móveis cheiros e tecidos.
Quando o Ricardo nos deixou, quando me deixaste, nem assim conseguiram abandonar-me entre tanto lixo. O que deixaram viver continua e agora, João, as coisas vão falar-te do que não desejas.
Sem que se note, a sombra fez buracos entre os sons e trocou os lugares às cores.

28.12.05

Irrealidade

Abro a porta da escada e sinto um peso imenso no meu corpo. Ao virar-me, já dentro do prédio, reparo de novo no corpo franzino da prostituta que ocupa o passeio do outro lado da rua, a fumar um cigarro, vestida com um casaco cinzento. Naquela margem da rua está o laboratório de física, que de noite mergulha na escuridão profunda de uma espécie de buraco negro. Eu pertenço à fileira de prédios, deste lado. Entro e acendo a luz da escada. A lâmpada é tão estranhamente fraca que banha de sombras o corredor, tornando mais fantásticos os relevos Art Deco. Nesse instante, sinto de novo o peso imenso da solidão. E subo os primeiros degraus da escada. E parece-me que a escada se torna mais alta, que cada degrau é mais intransponível que o anterior, que a realidade se prolonga no vazio. Até que no terceiro andar, no último lanço, os degraus são tão altos que devo erguer a perna num movimento amplo, com grande esforço, para os subir. Abro a porta da casa e estou na escada. Olho o corpo franzino da prostituta no passeio em frente, que veste um casaco branco e não fuma. O laboratório de física em frente é uma massa de negrume sinistro, que me acentua o peso imenso do corpo. Percorro o corredor sem ornamentos, apenas a parede amarelada. Subo os lanços de escadas, mas são só dois e, quando abro a porta da casa, entro na sala e, da janela, vejo a prostituta no passeio em frente, a qual não fuma, mas veste um vestido demasiado fino para inverno. E então invade-me o calor imenso do meu sobretudo, pois visto sobretudo numa noite de verão tropical. E, ao tirar a roupa, percebo que a realidade está lá fora, além da janela e nos limites do laboratório de física, onde uma luz agora brilha tenuamente, uma realidade fora de mim, feita de acaso e aleatório. E a prostituta, quatro andares mais abaixo, olha para a janela onde eu deveria estar e não vê ninguém.

Etiquetas: ,

Ilumino-me d'imenso


No dia 26 de Janeiro de 1917 em Santa Maria La Longa, Giuseppe Ungaretti escreveu um poema ao qual deu o título Mattina, com apenas duas linhas:

«M'illumino

d'immenso.

Nessa mesma manhã, num descampado sem nome, o meu bisavô terminava de colocar a máscara anti-gáz mostarda e flectia a perna esquerda, ao mesmo tempo em que a mão direita se agarrava a uma pequena ramagem de fortes raízes que o ajudasse a dar o salto, saindo da trincheira. Depois...


Nota: Na realidade, diz-me o meu grande amigo e camarada de blogue Luís Naves, o primeiro soldado português a cair em batalha na Guerra de 14-18 só morreu em Abril desse ano de 1917. Deste modo, mais uma vez se demonstra como não há boa ficção ou literatura, sem a devida investigação prévia. Dito de outro forma, o meu bisavô voltou para casa são e salvo mas, dizem, a bater mal devido aos efeitos do gáz mostarda. As datas reais da sua ida, batalhas e regresso perderam-se no limbo familiar.

Winter dialogue

- I’m cold. Let’s go home.
– But you used to love winter, darling.
– Yes. I know. But I’m your wife now.

27.12.05

Microcosmos II

Tinha imensos planos. Lembro-me de falar neles numa tarde em que passeámos juntos, à beira do Danúbio. E contei-lhe tudo, a maneira como fugiríamos para o Ocidente, como iríamos viver em Paris, na liberdade e no et cetera. Mas as águas do rio (quase negras, nada têm de azul) corriam em sentido inverso ao dos meus sonhos. De contrário, bastaria deslizar numa jangada até à fronteira. Não pensem que a falta de liberdade é exclusiva da política. A mancha de um regime está em múltiplas situações mínimas, na desconfiança do vizinho que fala com reticências, na nossa frase estrangulada e na imaginação contida. É coisa mental, portanto, e cada um de nós é o seu próprio e melhor polícia. (...) Passeava com ela, andava fascinado pela sua beleza (um narcótico de perfume, a beleza) sobretudo o gesto míope de focar o objecto contemplado, o que lhe dava ar de estar muito interessada. Mais do que uma contemplação do outro, o amor é a satisfação pelo que julgamos ser o fascínio que o outro tem por nós. Ou o absoluto inverso: amamos mais quando nos rejeitam ou nos amam desvairadamente. Todo o ponto intermédio é banal. (...) defeitos de carácter contava-lhe alguns, embora a cegueira das ilusões juvenis me impedisse de os ver verdadeiramente. Por vezes, ela parecia discordar, mas nunca o dizia. Nunca optava pela dissimulação nem pela nudez. (...) Budapeste brilhava como uma jóia, a cidade vestira um tecido dourado que me impedia de perceber a sua impureza íntima. Era fim de tarde e o Verão terminara. No céu voavam farrapos de nuvens, que a luz oblíqua pintava de mil cores, como se fossem telas impressionistas. As fachadas dos prédios de Pest resplandeciam. “Nunca deixarei esta cidade”, disse ela, de repente, num acesso de franqueza. “Porquê”, perguntei. E ela disse: “Sou feliz aqui”. Dissera aquilo com uma autoridade que não deixava dúvidas e, para mim, foi como se um raio de luz a iluminasse de forma diferente, quebrando um feitiço que até aí não pressentira. O rio corria em sentido inverso ao dos meus sonhos e foi a última vez que passeámos juntos na margem do Danúbio.


Microhistória de Lajos Kormányos. Tradução do original húngaro: Luís Naves

Samuel Beckett: Possível «Intervalo»


Entre a pulsão de saliva o desejo de fim lembro-me parte do início se não me divirto a inventá-lo porque houve qualquer coisa antes mas não recordo senão depois distintamente isto é houve qualquer coisa antes mas não tenho a certeza


momentos sobre momentos calculadamente coreografados agora um espaço estreito na memória ou antes fosse intervalo é espera


Estamos sentados nas palavras imóveis nós e elas se pensarmos talvez acabe se falarmos e por isso mais do que as palavras os silêncios digo-te o pouco que me resta mas quero lembrar-me primeiro de qualquer coisa


o coágulo nu a voz feminina e leve o braço debaixo da cabeça cabelos pretos sinais de doença tu e a tua segunda boca eu e a minha única fala ambos calados já na espera de nada ou isso é agora?


Alice in Wonderland dans le Pays des Rèves sempre olhos de parede talvez tenhas sido corpo de luz como se diz não é em ti que procuro a alegria fecho-te cerco-te nem sequer consigo lembrar-me de qualquer coisa que deve ter havido antes.


Mentiras. Verdades apenas horizontais trabalho de mãos e boca e todos os poros parado sobre ti a senti-lo dentro encher-te só esvaziar-me sem acreditar no que digo ouço penso


somos o outro para cada um o sangue e o branco deste lugar com ruídos de mastigação resíduos psiquiátricos todos os vícios juntos cigarros e citações


Se queria lembrar-me de qualquer coisa desisto escondem-se os nomes por detrás de nós já tantas vezes somados caricaturados tantas vezes chamados personagens.

Um filme que nunca vi

Numa manhã, de Outono, encontrei no chão do jardim do Palace Hotel em Vidago uma única folha de papel,ainda legível embora molhada pela chuva. Guardei-a com cuidado, impressionado pelo seu conteúdo. Nunca cheguei a ver o filme a que pertence a cena, nem sei se chegou algum dia a existir.
Sec. 122

CASA MARIAN/HABITACION

INT. DIA


MARIAN está cambiándole los panãles a su hermana, un bebé de pocos dias.

Juega com ella, la acaricia, la arrulla, la mima. Todo con mucho cariño.

La devuelve a la cuna. Pone un dedo a su alcance para que, como acostumbram a hacer los bebés, se agarre a él com la mano. MARIAN nota algo extraño y se aplica a abrir el pequeño puno de la hermanita.

Se da cuenta de que la niña tiene las manos como los patos, con membranas que unen los dedos entre sí.

Sale corriendo de la habitación y exclama, asustada:

MARIAN:

Mamá!

26.12.05

Carlos Queiróz: Possível «Outro Poema»

Houve um poema antes de ti!

Não tinha já quando te vi

a ingénua crença na verdade,

ou a certeza de uma saudade

futura.


Se me tivesses oferecido a alegria,

não agora, mas antes da poesia,

não te daria este beijo simulado

nem sorriria assim ao teu pecado,

com amargura.

À espera do 89

No denso nevoeiro, o rapaz deixara de ver. Largado ao acaso, tentou não abandonar a precária vereda de lama, até distinguir, com alívio, o vulto indefinido da paragem do autocarro 89 a emergir naquela sopa cinzenta. A pequena construção (aberta em dois lados, com o banco corrido ao meio) ficava a certa distância do bairro de Santa Luzia. Os habitantes tinham de atravessar o campo, para chegarem à estrada.
O rapaz reparou que estavam na paragem mais três pessoas: um velho, uma rapariga, o vizinho do mesmo prédio, que trabalhava na fábrica ao fundo da estrada. “Ah! És tu?”, perguntou-lhe o vizinho, “Parecias um fantasma”. Depois, ficaram os quatro em silêncio. A rapariga era estudante, devia ir para o liceu; o velho tiritava de frio, sentara-se no banco corrido, como se tivesse falta de ar.
“Quando chega o autocarro?”, perguntou o rapaz.
“Meia hora de espera!”, explicou o operário. “Está cada vez pior”.
Queria dizer o serviço, mas era homem de poucas falas.
Não apareceu mais ninguém, o nevoeiro adensara, como se fosse agora sólido muro. A humidade dificultava a respiração e o frio produzia uma dor de fundo, igual à que se sente depois de um espancamento minucioso. O tempo por vezes acelerava, depois sofria síncopes fragmentadas e parecia prolongar-se além da atmosfera liquefeita.
“Não podemos ficar aqui eternamente”, disse o rapaz. A rapariga concordou, com um gesto que dizia tudo sobre a sua angústia.
“Temos de ser pacientes. O 89 está a chegar”, resmungou o velho.
Tentaram ouvir barulho, mas além do nevoeiro havia apenas o indefinível.
“Um silêncio de morte”, disse o rapaz, repetindo a expressão que lera num livro de poesia.
“Como se isto fosse um sonho”, interrompeu o operário, que não era dado a metáforas.
“Uma hora à espera do 89 não é normal. Vou regressar pelo mesmo caminho por onde vim”, decidiu o rapaz. Assim fez e a rapariga seguiu-o de perto.
Passou mais tempo. As sombras dos dois jovens tinham desaparecido na bruma espessa. O operário cansou-se:
“Vou seguir pela estrada”, disse ele ao velho, “venha daí comigo”.
“Prefiro ficar, o autocarro não tarda”, respondeu o velho.
O operário encolheu os ombros e lançou-se à caminhada.
O rapaz, a rapariga e o operário saíram do nevoeiro pouco depois; regressaram logo ao ponto de origem, mas a paragem estava vazia. Restava uma ligeira névoa e o idoso tinha desaparecido. Ninguém sabia quem ele era, ninguém deu pela sua falta. Por vezes, na paragem, nas tardes de vento, parece aos viajantes que alguém diz “não tarda, não tarda”. Mas, enfim, tudo isto pode ser uma simples lenda.

José Régio

Fragmento possível de a Sarça Ardente

Eu, que nunca te dei Senhor uma palavra

que não dúvida ou grito de aflição.

Qualquer troça pérfida da minha lavra

para que rissem alto de Ti na multidão.

Quero agora ver-me humilhado no castigo,

anseio com orgulho Teu rompante punitivo.

Assim saberia como o desespero que aqui digo

te incomoda ou move, e que estás vivo!

Dialogue at dinner

- I’ll have the steak au poivre, please.

– You like that, don’t you?

– Like what, darling?

– To say “steak au poivre”, with that fake French accent.

– Never mind. I’ll have the shrimp salad instead.

25.12.05

Feliz Natal, senhor António

O senhor António era um homem banal, mas teve um sonho invulgar: deveria erguer em frente à sua casa um enorme presépio, com figuras em pedra. Foi uma ideia que se transformou em obsessão. Os vizinhos começaram por reparar naquele estranho jardim, que nascera bizarramente no terreno ao lado da casa baixa. Depois, todas as noites, viram o senhor António na tarefa insana de cortar lascas às pedras, numa obsessão, iluminado apenas por uma lâmpada improvisada, fizesse calor ou frio, sob a chuva ou sob o imenso espectáculo do céu repleto de estrelas. A coisa foi crescendo, até se notar que seria um presépio, com todas as suas figurinhas esculpidas em estilo realista que desagradou aos críticos de arte da vila. Alertadas, as autoridades visitaram a inusitada obra, exigindo ao senhor António que pedisse uma licença municipal, pelo menos isso, para tornar o presépio conforme aos regulamentos camarários. Embora estivesse falido (a pedra fora cara) o senhor António percorreu o calvário da burocracia, pagou as coimas da lei e preencheu mil papéis burocráticos. Muitas pessoas iam de propósito àquela rua anónima da vila, quase no final da zona urbana, para verem o louco a trabalhar na sua visão. As figuras (17, ao todo) iam nascendo, com a família de Cristo, reis magos, pastores, animais, alguns sorrindo, outros numa pose quase triste. Os transeuntes olhavam para aquilo e lamentavam o ar tosco, a maneira ingénua, o que consideravam falta de beleza. Alguns torciam o nariz, abanavam a cabeça. No final, embora já não tivesse dinheiro para comer, o senhor António enfeitou tudo com uma iluminação que acentuava as sombras e criava drama. Na véspera de Natal, muita gente foi ver o presépio. Quase ninguém gostou, mas um grupo de três crianças foi ter com o escultor e uma delas disse: "Feliz Natal, senhor António". Eu era uma dessas três crianças.
O presépio de pedra já não existe, o senhor António já não existe. A rua da vila é hoje diferente. A estrada passa pelo meio do terreno. Já não há casas baixas, apenas prédios de apartamentos, 17 ao todo.

23.12.05

O meu presente















Gostava muito, mas muito mesmo, de receber uma espingarda de pressão de ar, para abater os Pais Natal escaladores. Obrigado. Prometo não causar danos patrimoniais de qualquer espécie. Tenho muito boa pontaria.

Natal subterrâneo

Nada havia no homem que chamasse a atenção, salvo os dois lugares por ocupar a seu lado, no banco lateral. Nem a fragrância, nem a roupa de marca, nem a barba bem escanhoada mantinham ao largo os passageiros, apesar da carruagem repleta. Mas um vislumbre bastava para ver os seus olhos fitos no chão, e outro chegava para sentir o seu silencioso desespero. Como uma onda de choque, uma ameaça de contaminação, um aviso de perigoso contágio. Ao abrirem-se as portas, a mole de homens e mulheres olhou-o com esperança de que se levantasse e saísse. Ele assim fez. Mas os lugares ainda permaneceram vazios, até à paragem seguinte. Anjos.

Um Feliz Natal

A tragédia de Morais

Não foi crueldade, mas mais um acaso que colocou aquela viga à frente da mesa de trabalho de Morais. Oficialmente, chamaram-lhe reorganização do escritório, mas os funcionários viram as mudanças como uma dança de cadeiras. Para uns, abriram-se oportunidades de subir na hierarquia; para outros, a rotação das mesas, a nova ocupação do espaço, representava uma espécie de visão do abismo e a inevitabilidade da queda. Foi o caso de Morais e convém sublinhar que não se movia contra ele qualquer intriga, não havia sequer má vontade dos superiores. O acaso lançara as suas enigmáticas cartas e colocara aquele pilar do edifício à frente da secretária. Ou, se preferirem uma descrição realista: tinha sido necessário abrir gabinetes no andar, reorganizar os tabiques e, quando foram colocar a secretária de Morais, apenas sobrava aquele espaço com vista para o pilar de suporte, que o obrigava a ficar de costas para o resto dos empregados. Neste ponto da história entra talvez alguma crueldade natural dos seres humanos. Tudo aquilo foi interpretado pelos funcionários como uma queda em desgraça. A reorganização fora mal pensada, mas ninguém levou isso em conta, era por castigo que o homem tinha sido colocado naquela posição, a olhar para um pilar de estrutura do edifício. Em abono da verdade, diga-se que Morais não era popular, antes pelo contrário, com aquele seu ar macambúzio nunca fizera amigos. E não fez mais. Passou um ano e os funcionários do escritório foram esquecendo Morais, que apenas viam de costas, enquanto ele olhava pensativamente para a viga estrutural. E, depois, quando o Morais foi despedido, o que cada um achou natural, a sua secretária ficou dois dias vazia. E todos os trabalhadores do escritório viveram dois dias de angústia, até saberem que tinha sido o Nunes o escolhido para ocupar o lugar em frente ao pilar, sem vista para nada senão a tinta da parede.

22.12.05

Reflexão Taoísta

Tomei plena consciência da minha vaidade

Ao deduzir que me movia

em maior parte pelo gosto

do que não passava de aparência

Pois me seduzia

esse passar pelo que não era

o viver em desilusão efémera

do que apenas parecia

na verdade, a vaidade da vaidade

Meia dúzia de linhas (1)

As mulheres bonitas não viajam de autocarro.

Ardem no segredo dos cabeleireiros,

flutuam dissolutas nos ramos mais altos da manhã.


Inclino-me agora, espreito o teu umbigo

desguardado


e encontro um caroço de maçã.

Filmes de Culto (I)

A bruma espessa parecia a respiração fria do mar. Desci a rua molhada. Daniela estava na esquina, como prometera na véspera, ao dizer que me queria beijar por uma derradeira vez, antes de eu embarcar de novo. “O meu marido não poderá saber”, avisou. Dizia estar loucamente apaixonada, ronronava como uma gata infantil. Nessa noite, ela cumprira o prometido (ou seria tudo aquilo uma complexa urdidura?) A sirene de um navio uivou no interior do nevoeiro denso. Foi exactamente quando a tomei nos braços, submissa. Daniela agarrou-se a mim, num desespero, numa sede. Senti os dedos dela a cravarem-se na minha carne, presos ao meu braço, até doerem. “Um equívoco”, disse eu, “e se o teu marido descobre?”. Inventara aquela desculpa, com uma brusquidão que me surpreendeu, pois sabia que isso não iria acontecer. Daniela negou essa possibilidade, com um riso desvairado. E daquela forma ficámos alguns segundos, em silêncio, num abraço tão íntimo como o de dois afogados. Então, não pude adiar mais a despedida. “Tens de voltar para ele”, ordenei. O desespero no olhar dela: “Vou contigo, até ao fim do mundo”. E cruelmente expliquei-lhe, sem doçura alguma: “Esse sítio não existe”. Só então, com um gesto dos braços, exercendo alguma força, afastei Daniela, como se ela pertencesse já ao meu passado.

A Bruma do Amor, filme mexicano de 1949

Um pequeno-almoço de campeão


Tenho à minha frente uma caixa de pralines neuhaus. E sim, a caixa é igual à da fotografia. Em 1857, Jean Neuhaus abriu a sua «Galerie de La Reine» em Bruxelas. Em 1912, o seu neto e homónimo teve uma ideia que mudaria o Mundo para sempre e criou o praline, ou seja, o chocolate com creme lá dentro.
Neste momento, engulo um Snobinette Champagne (Crème au beurre au marc de champagne avec grillage de noisette). São servidos?

Dialogue shopping

- Would you like this scarf, darling?
- I hate to have things around my neck. You know that. I’ve told you a thousand times
– Sorry. I forgot (…) Thanks for the tie. It’s lovely.
– I know. It‘s perfect for you.

21.12.05

Ora bolas!


Hoje descobri que sem melancolia não consigo escrever. Afinal, sou mais português do que pensava.
Imagem do artista checo Alen Divis.

Rosebud, Cap. VI

De repente ele morreu. E tudo o que eu disse àquela mulher que mudara de cor foi «Lamento muito», enquanto olhava de lado para a madeixa descuidada, o brinco na orelha imperfeitamente recortada, único e diminuto toque de luz.
Estavámos no mesmo lugar onde, outrora, as azedas desciam a colina invisível. Aí, onde hoje o betão arranca sombras à terra e os automóveis espezinham as águas passadas, agora subterrâneas, bebíamos nós açúcar mascavado e trocávamos cromos de jogadores hoje esquecidos por todos.
Nós. Eu e este homem deitado para sempre, com este fato vestido para sempre que será, afinal, pouco tempo.
Agora, a mulher olha-me também com metade da cara. Com a outra o seu próprio passado deles e tudo o que diz é: «Obrigada», para depois apertarmos as mãos. Ou antes, afloramos os dedos. E é quanto basta para não mais nos encontrarmos.

O prazer de meditar


Amanhã é o Solistício de Inverno, pelas 22.20H se o Borda de Água não falha. E não costuma falhar. Boa altura para reflectir no balanço do ano e meditar, um dos prazeres que nos dão mais serenidade e equilíbrio. A citação é retirada do mesmo lugar de onde foi extraída esta imagem, o clássico taoísta O Segredo da Flor Dourada, o qual terá sido transmitido oralmente durante séculos até ser gravado em placas de madeira no século VIII: «Todos os homens sagrados partilham a mesma essência: nada é possível sem contemplação. Quando Confúcio diz: O conhecimento leva-nos até ao objectivo; ou quando Buddha lhe chama o Caminho do Coração; ou Lao Tzu diz: visão interior, é tudo o mesmo». A eles, claro, acrescentem-se as palavras do Cristo. E amanhã, contemplemos com alegria essa essência que todos partilhamos, santos ou não.

Dialogue in an hotel

- Do you remember this place?
- Yes, my love. Perfectly.
- Then you do remember what I was wearing when we arrived, years ago?
- Sure I do, darling. You were wearing a smile.

O dentista judeu

Quando levaram o dentista judeu da cidade, achei que as autoridades estavam a agir com excesso de zelo. Até esse momento, aquilo não me tocara. O partido tinha aspectos desagradáveis e havia demasiados fanáticos à solta, que ficavam loucos e faziam visitas às pessoas que tentavam levantar a voz. Mas a cidade é minúscula e nunca me pareceu mais do que delinquência em pequena escala, até levarem o doutor Weiss, que era um velho inofensivo e, de qualquer maneira, já não tinha clientela desde 1933. A nossa vida mudou quando levaram o dentista judeu e a sua família. O velho e a mulher, mais a nora e dois netos. Depois, levaram as outras duas famílias judias e deixámos de ver as estrelas de David naqueles fantasmas e pudemos esquecer que tudo acontecera ao pé de nós, perante o nosso silêncio.

20.12.05

Microcosmos I

No grupo só havia jovens (como explicar?) enfim, só me ocorre uma palavra adequada: belos. Tinham a beleza dos deuses habitantes do paraíso. Isso não parecia banal naquele tempo, o regime era sufocante, o quotidiano amolecia na austeridade de uma casa mortuária. Mas os amigos de Szilvia Faragó tinham a espontaneidade dos predestinados. No final dos anos 70, Szilvia ainda era adolescente, mas eu não a via assim. Estava apaixonado por ela e não a conseguia ver senão pelos olhos distorcidos da paixão. Szilvia tinha um jeito de rir, movendo a cabeça até ficar de perfil, com os cabelos cor de cobre a desenharem um arco de curvatura perfeita. Um movimento esplendoroso, em contraluz. Lembro-me do dia em que os acompanhei. Não me convidaram, mas segui-os. Queria confessar o meu amor e ela ficaria impressionada; ou haveria uma ocasião para mostrar a minha imensa coragem (lançava-me ao Danúbio para a salvar, ou algo assim). Hoje percebo que ninguém teve a bondade (teria sido isso, bondade) de me dizer que eu não fazia parte. “Não sejas ridículo, Lajos, não queremos que venhas connosco”. Destoava deles, com o meu ar rústico. Mas fui na mesma. Passeámos à toa na zona oriental de Budapeste, até ao Vidám Park, e nem me discriminaram, tratavam-me apenas como um corpo incómodo. E Szilvia distanciava-se, aumentando a minha ansiedade. O grupo foi até à roda gigante, segui-os. Havia dois lugares em cada cadeira. As cadeiras subiam até uma altura de 30 metros e depois desciam, numa elegância. Achei que aquela era a minha oportunidade e entrei no desespero dos jogadores que apostam tudo de uma vez. Tinha alguns forint no bolso e comprei dois bilhetes. “Vês Szilvia, vês? Tenho dois bilhetes”. Lá em cima, quando fôssemos só nós, confessaria o meu amor. Szilvia Faragó pegou nos dois bilhetes. Fingiu que estava feliz. “És um querido, Lajos”. E deu o braço ao Adám, que nem sequer era o namorado dela e que, no grupo, era quem eu mais detestava. E foram os dois juntos, subindo na roda grande.


Microconto de Lajos Kormányos
Tradução do húngaro: Luís Naves

Dialogue in the mirror




















- I'm feeling older today.
- You're older, darling. One day older, at least.
- Do you like this wrinkles beetween my eyes?
- I don't know, love. Are those yours, or mine?

19.12.05

Romântica

O orvalho adormece nas folhas de Outono. Os plátanos parecem cobertos de velhas rugas. Um banco de jardim, ao frio, e a noite que se dilui na luz baça de um candeeiro noctívago. A badalada lenta do sino de igreja. Então, ouve-se ainda, devagar, o passo sombrio de alguém que passa sobre o manto meigo de folhas caídas e que deslizam na humidade como um tapete mal seguro. O andar humano tem ritmo incerto. O silêncio não existe, é apenas a pausa distraída nos ruídos à volta, sobretudo o que o vento produz, ao agitar as folhas do arvoredo. Os ramos colidem, como bengalas de cegos, e os passos prosseguem, até desaparecerem ao fundo. A alameda está de novo vazia, devolvida aos seus habitantes da noite; não ao exacto silêncio, que seria inquietante, mas ao baile das folhas soltas, entregues a ousados voos de andorinha, curtos e rápidos, em turbilhões de ar.

Dialogue in bed

- My love, will you miss me?

- Miss you? When?

- When I am gone. When I disappear.

- What do you mean, disappear?

- WHY DON’T YOU ANSWER?! WILL YOU MISS ME OR NOT?!

- Yes darling, I will miss you. Could you please stop shouting and turn out the light?

- Ok. Sorry. Sleep well.

- You too.

(…)

- My love.

- Yes?

- I’ll be dead one day, you know?

- I know. Don’t worry. I’ll be dead too.

Vamos matar a borboleta


«Quer-me parecer que alguém devia matar o raio da borboleta. Quer dizer, anda a causar tufões e naufrágios e tremores de terra há demasiado tempo. Se queres resolver os problemas do mundo, primeiro devias descobrir essa borboleta e esmagá-la».
Will Ferguson, Felicidade ®

Rosebud, Cap. V

Aqui estava eu ou uma pequena parte de mim, a cabeça pouco ultrapassando este mesmo balcão. Aqui, onde sempre se reuniram pescadores e jogadores de rugby, como já só acontece nos poucos lugares que Cascais reserva para os seus habitantes antigos.
Foi então que o pescador se inclinou para mim. Digo que era pescador pelo bigode, mas bem poderia ter sido jogador de rugby e disse: «Vocês, jovens de hoje, parecem galinhas antes de um terramoto. Correm, correm, mas não sabem para onde vão».
Nunca me esqueci desta frase, embora me tenha esforçado. Nunca me esqueci porque depois crescemos e ele tinha razão. Corremos o tempo todo, às vezes muito depressa e em todas as direcções, mas se repararmos bem não corremos para lado algum e algumas vezes, quando recordo a frase dele, já nem é nisso que penso. É no terramoto. O terramoto que não veio e quando virá o terramoto ou se ele já chegou e nós é que não o sentimos. Eu, e tu, e os outros tão ocupados, demasiado ocupados correndo.

18.12.05

Quase

Esta é uma cidade rica e quase todos os seus habitantes são ricos. Foi este o pensamento que Madou repetiu e repetiu, ao entrar na pizaria. Cheirava a pão e, lá fora, estava frio. O africano observou atentamente: um homem de barba grisalha, sozinho na sua mesa, escrevia num bloco amarelo; quatro raparigas louras e largas riam em delírio, enquanto bebiam um grande jarro de vinho branco, quase vazio; duas mulheres de meia idade falavam dos filhos, usando a linguagem áspera daquele terra; um grupo de amigos italianos, três homens de negócios, do escritório do prédio ao lado. E os empregados quase morenos; a dona do restaurante, a ruiva de ar simpático que namorava o rapaz espanhol que bebia vinho na mesa da zona dos fumadores. "Jus pressés", dizia a placa. Madou entrara e ficara ali de pé, à espera que alguma coisa acontecesse, a saborear o calor da sala. Um dos empregados aproximou-se, meio zangado. Perguntou a Madou se preferia mesa de fumadores. Que sim, respondeu o africano, acrescentando, num tom cantante, que não teria dinheiro para consumir. A ruiva aproximara-se, intrigada com o intruso. Disse, com gentileza, que se ele não podia pagar, então também não poderia ficar ali especado, a empatar o caminho à clientela. Ela era simpática, quase amorosa, pensou Madou. Depois, afastando aquela ideia, o africano disse que o problema era o frio: "Não me consigo habituar ao frio lá fora", explicou, como se fosse lógico naquela circunstância, ou isso pudesse interessar àquelas pessoas. O homem que escrevia no bloco amarelo ergueu a cabeça, mas sem ouvir; ou, se ouvira, sem se interessar demasiado. A ruiva e o empregado nada disseram. O amante espanhol aproximava-se. Ao receber os olhares frios e indiferentes que se tinham pregado na sua carne, o africano Madou deu meia volta e regressou à escuridão da rua, que o reflexo da neve quase iluminava.

17.12.05

Parábola Sufi

«No momento em que a caravana parou para descansar, notas a falta de um camelo. Procura-lo por todo o lado. Finalmente, a caravana volta a partir sem ti e a noite cai. Toda a tua carga jaz no chão e perguntas a toda a gente:
- Viram o meu camelo?
Inclusivamente acrescentas:
- Saberei recompensar quem me der novas do meu camelo!
E toda a gente faz troça de ti.
Um diz:
- Acabo de ver um camelo de pelo vermelho e muito gordo. Foi naquela direcção!
Outro:
- O teu camelo não tinha a orelha rasgada?
Outro:
- Não usava uma sela com uma manta bordada?
Ainda outro:
Vi um camelo meio cego tomar esse caminho!
Desta maneira, toda a gente descreve o teu camelo na esperança de se aproveitar da tua condescendência. No caminho do conhecimento, não falta quem evoque os atributos do Desconhecido. Mas tu, se não sabes onde está o teu camelo, reconhecerás assim a falsidade de todos estes indícios. Chegas mesmo a encontrar gente que te diz:
- Também eu perdi o meu camelo! Procuremo-lo juntos!
E, quando por fim surge alguém que te descreve realmente o teu camelo, a tua alegria não tem limites e fazes desse homem o teu guia para o recuperares».

16.12.05

Rosebud, Cap. IV

«Tens toda a razão» comentou ele, treinador de uma equipa ignorada da terceira divisão regional, quando elevei a voz e lembrei os últimos nomes que recordo: Damas, José Henriques...esses eram os tempos...quando não se falava de dinheiro, de quanto ganhava este e por quanto se mudara aquele.
O que interessava eram os golos, apenas os golos e por vezes nem isso mas apenas a festa. Como naquela tarde em que, pela mão do meu pai, chegámos ao pequeno mas relvado estádio, o Estoril ainda na primeira divisão e ele comprou aquela almofada laranja por dentro, plastificada por fora, e a estendeu sobre o duro banco corrido de pedra. Aí ficámos, gritando com os outros até não me recordar quem venceu esse meu último jogo.
Como se chamava o guarda-redes? Não Damas, nem José Henriques...mas lembro-me bem de nós os dois sentados, o meu pai e eu, sobre a almofada que levámos para casa e não mais abrimos.

15.12.05

Que livro seria?


José Mário Silva foi buscar ao criador de Bustos Domecq o nome para o seu novo blogue A Invenção de Morel, cujo link está aqui ao lado. Já não falo com o José Mário há muito tempo, mas outro dia vi-o encostado a ler na passagem subterrânea do Metro no Marquês.
Fosse a singularidade do acto naquele local, ou talvez o facto de ele estar tão embrenhado, imóvel entre o circular das gentes, e ter-lhe-ia falado. Assim, passei também eu adiante.

Morning tea


Por vezes basta uma boa chávena de chá, um licorzinho a ouvir crepitar a lareira, para vermos a vida de um outro ângulo, menos obtuso. E menos agudo, também.
Nota: (O quadro é de um autor, cujo nome esqueci, da escola de Leninegrado).

Quem sai aos seus

Um ovo tão novo,

delinquente juvenil?

Nunca será com'o papá:

Frango DE Caril.

Rosebud, Cap. III

«Quando colocaram o socialismo na gaveta, o que achas que fecharam lá dentro também», pergunto a um amigo que costumava ter um “ista” à frente do nome, em anos que já lá vão não assim há tanto tempo. E ele responde-me, mas muito devagar e só depois de pensar um bom bocado e sorver duas vezes o seu copo de whisky de malte muito caro, mas não tão caro que ele não possa pagá-lo. Estou convencido até de que poderia pagar uma garrafa inteira. «Acho que foi a certeza» diz ele então. «É isso, foi a certeza. A partir daí nessa gaveta ficaram as palavras definitivas, do lado de fora as palavras temporárias. As mais pequenas. Apenas não demos logo por isso, ou então disfarçámos bem. Mas que raio de perguntas que fazes, vê-se mesmo que não tens nada em que pensar». Mas não pude deixar de notar como já não terminou o whisky com tanta satisfação.

14.12.05

A ópera dos malandros

Estreou em Viena a 16 de julho de 1782. Quando o Imperador ouviu O Rapto do Serralho no Hofburgtheater, na noite de estreia, terá comentado que continha "um número muito grande de notas". Ao que Mozart terá respondido "tantas quanto eram necessárias". No S. Carlos, até dia 17, "Die Entführung aus dem Serail" tem direcção musical de Julia Jones, o tenor Bruce Ford e as sopranos Iride Martinez e Whal Ran Seo nos papéis principais e encenação de Giorgio Strehler. Apropriado, depois do espectáculo, tomar um bom banho como o exemplificado abaixo. O ano passado, a encenação de Calixto Bieito na Komische Oper, em Berlim, provocou um escândalo e a revolta do público. Não se prevê que tal aconteça com esta.

O prazer do banho


Jean-Auguste-Dominique adorava o banho, tal como eu. Burguês, sensual, causa primeira de muito do que há de mais kitsch entre os seguidores que não souberam como segui-lo, Ingres pintou este Banhos Turcos aos 82 anos. Assim eu lá chegue em estado de pegar numa esponja, quanto mais de pintar.
P.S. «Banho» aqui deve entender-se no seu sentido mais lato, como se deduz da figura.

Rosebud, Cap. II

Os automóveis devoraram os nossos caminhos e neles permanecem de barriga cheia. Fartos, adormecidos, inertes, rindo-se da credulidade com que os empanturramos de combustível. Sem entendermos que não é dele que se alimentam mas antes do nosso desespero e desalento, da recusa que apaga dias como aquele em que vi a árvore curvar-se sem que houvesse vento sobre ti, esticando a sombra mas uma sombra quente e suave, nada escura, antes luminosa como a tua saia com a cor das primeiras papoilas. «Que tem isso a ver com os automóveis», perguntarias se ainda aqui estivesses. Mas explico-te com toda a paciência que ainda consigo reunir como os automóveis entupiram as entradas do jardim e como se esticam sobre os passeios que o rodeiam e por vezes o atravessam rindo-se, escurecendo a relva e essa árvore que um dia reduziram a esta ensombrada memória de ti.

13.12.05

Um dia destes













O homem abandonou a pasta num lugar visível.
Não muito longe,
um intervalo prateava as águas do rio. Hoje
- pensou a florista fechando o guarda-sol –
os crisântemos venderam-se para os mortos,
como se fossem amados ainda pelos vivos.

O homem começou por tirar a gravata e depois,
um grito colou-se ao som curvo do eléctrico.
De nada serve dizer que horas eram,
apenas quase noite, para os poetas o crepúsculo.
Talvez houvesse também uma criança,
testemunhando tudo com os olhos de Deus.

“Bem haja” foram as últimas palavras do merceeiro
e um sorriso a sua única resposta
antes de as batatas rolarem, em direcção aos telejornais.
O homem caminhava distante, mas não tanto
que esquecesse o que fizera.

E a luz de prata sobre o rio? E a luz de prata?

Verão

Tinha tempo. Pousou a pasta. Ninguém desconfiara dele. Só então, mais descansado, observou as pessoas em volta. Na mesa em frente, um casal jovem conversava. Nas suas costas, duas crianças. A menina olhava-o, com um dedo na boca, de quem se interroga sobre o insólito. Foi essa proximidade que o fez pensar de novo, como se um mecanismo interno tivesse recomeçado. Até chegar ali evitara raciocinar, pelo que os seus pensamentos eram práticos, fazer avançar as pernas sem se desequilibrar, sentir o peso da pasta, superior ao que ela efectivamente tinha e que medira, nos seus dois quilos. Pensara apenas nos acidentes do percurso, estudado minuciosamente, e que a polícia, mais tarde, tentaria reconstituir. Avançou por ali, deteve-se junto das flores, viu a tranquilidade do lago e dos plátanos na alameda, respirou o verão.
Agora, pensava nos dois meninos. Lamentou que tivesse de ser assim. Descansou, ao imaginar que talvez entretanto fossem brincar para o relvado ao fundo. Havia tempo. Teve pena da mulher graciosa e que adivinhou gentil. Desejou que ela se zangasse com o namorado, que se erguesse e saísse, ainda a tempo. Gostaria de ver o seu vestido longo a irromper pelas mesas. Viu os lábios húmidos dela, que gostaria de ter beijado. E, de repente, teve saudades da vida.
A criança afastara-se. Algo ficara fora do sítio. Soube instintivamente que se traíra. Talvez uma comoção interna revelada pelo corpo que já não lhe obedecia. Foi então que viu o príncipe Bikov, vindo da escada, uniforme branco, a condecoração a brilhar ao sol que acariciava a manhã. A trinta metros ainda, demasiado longe. O polícia que acompanhava o príncipe viu a criança e, depois, olhou para o estranho homem da pasta. E este soube de imediato que o polícia percebera tudo. O mundo precipitou-se. O príncipe Bikov recuava, empurrado, perdeu o quépi militar, que rolou no chão, muito pálido. Um copo caiu no chão. Houve um fragor paralisado.
E o anarquista pegou na pasta. O tempo esgotara-se. Accionou o detonador da bomba. A última coisa que viu foi a cara de anjo da mulher na mesa em frente, uma cara que estava no raio de acção da morte e que o olhava, numa interrogação triste.

12.12.05

Ouvindo Le Gymnopédiste


«Agradeçamos todos os sacrifícios que os críticos fazem diariamente pelo nosso bem, só pelo nosso bem; roguemos para a Providência os proteger de todo o género de enfermidades; os afastar de todo o tipo de contratempos; fazer com que tenham muitos meninos, e de toda a espécie, capazes de darem continuidade à espécie deles. São votos que não poderão fazer-lhes bem nem mal. Que ao menos lhes valham de muito e lhes dêem mais pés ... ... ... para escrever».

Erik Satie (aqui retratado por Jean Cocteau), em Elogio dos Críticos.

O respirar de Deus


A Catedral de São Vito, Praga, por Josef Sudek, depois de muito aguardar o minuto exacto de chegada da luz.

«E a música toca...»


Em Praga, ainda antes da queda do Muro, John Banville descobriu Josef Sudek. Eu descobri ambos em «Imagens de Praga», editado pela ASA. Ei-lo, aqui ao lado. Em baixo, ficam as palavras de Zdenek Kirschner, transcritas por Banville:
«Quando Sudek colocava o seu pesado visor de madeira sobre o seu robusto tripé, desembrulhava as lentes dos seus panos, seleccionava a lente certa, enfiava-se sob o pano preto ao qual chamava "a freira", considerava a composição e observava a luz, ajustava o equipamento, inseria a chapa fotográfica e abria o orifício mecanicamente ou levantando o pequeno "chapéu" da lente, então, quando a luz começava a pintar a imagem no negativo, e só então, pronunciava a frase mágica:
"A hudba hraje...". "E a música toca...».

Minúsculas são também as formigas

Talvez

Talvez baste uma pequena alegria.
Talvez
a redenção espreite em qualquer ausente gesto,
esquecido perdido entre o sépia deste parque,
o verde resplandecente do primeiro lugar.

Ou naquela criança brincando devagar.

Rosebud, Cap. I

«As bombas da China, mas grandes não as pequenas, custavam cinco escudos», recordo ao meu amigo de infância. Ele agora é gerente de uma “dependência” bancária mesmo ao lado deste restaurante oriental onde conversamos a meia voz. No seu fato Façonnable de impecável corte, confessa-me: «Estes chinocas chegam-me ao balcão com maços de notas sobre maços de notas, mas não vejo ninguém quando almoço aqui com a minha colega, aquela das pernas tão bem depiladas que nunca consegui tocá-las. Só vejo notas. Mas lembro-me, ainda bem que falas nisso, lembro-me como se fosse hoje dessas bombas de cinco escudos explodindo no chão, explodindo no ar e nós rindo verdadeiros, felizes. E sinto que nunca cinco escudos valeram tanto e as notas valeram tão pouco, isto digo eu», dizia ele, «digo eu que lido com dinheiro todos os dias, aqui, atrás do balcão ou às vezes sentado na mesa do chop suey de vaca, pagando a conta por favor é visa ao lado da menina das pernas depiladas, brancas, perpétuas, como a neve do Himalaia que nunca chegarei a tocar».